A hierarquização das escolas secundárias portuguesas através dos rankings está longe de ser um processo pacífico e consensual. Desde que foi iniciada a sua publicação pela imprensa, no ano 2000, muitas vozes levantaram-se contra aquilo que consideram ser um instrumento estratificador do sistema educativo, que poderá, a médio prazo, contribuir decisivamente para acentuar a desigualdade de oportunidades na escola. Uma das vozes que se levanta contra este processo é Rui Santiago, professor associado da Universidade de Aveiro (UA) e um dos autores do livro "Um Olhar sobre os Rankings", escrito em parceria com os seus colegas Maria Fernanda Correia, Orlanda Tavares e Carlos Pimenta, que serve de referência a esta entrevista. Doutorado em Psicologia da Educação pela UA, Rui Santiago centra principalmente os seus interesses de investigação na análise organizacional e na avaliação do ensino superior, sendo, nesse âmbito, investigador no Centro de Investigação de Políticas do Ensino Superior, organismo presidido pelo ex-Reitor da Universidade do Porto, Alberto Amaral. Na entrevista que se segue, Santiago contextualiza o aparecimento dos rankings no âmbito nacional e internacional, explica os motivos pelos quais os considera um instrumento com efeitos perversos para o sistema educativo e apresenta alternativas no domínio da avaliação dos processos educativos.
Que motivo o levou a si e aos seus colegas a efectuar o estudo que conduziu à publicação de "Um Olhar sobre os Rankings"?
Como se sabe, a elaboração de rankings de escolas é uma questão que tem vindo a ser discutida a nível internacional desde há algum tempo, seja no seio da comunidade científica seja na opinião pública, fazendo inclusivamente com que alguns países, como a Dinamarca, a Escócia ou a Irlanda, tenham decidido não continuar a divulgar este tipo de indicadores por considerarem que eles produziam mais aspectos negativos do que positivos. O nosso estudo surge fundamentalmente por duas razões. Em primeiro lugar para incentivar um debate sério e cientificamente fundamentado sobre os rankings em Portugal. Chocou-me o facto de os rankings terem sido publicados na imprensa da maneira que se sabe e o debate que se gerou à volta ter sido insípido, quando esta é uma questão que deve ser seriamente reflectida por ter impactos sérios nas escolas. Por outro lado, queríamos introduzir um ponto de vista diferente nesse debate. Sabemos que o discurso ideológico sobre a escola está actualmente dominado por uma perspectiva neo-conservadora e neo-liberal, que começa a ser pensada em termos de mercado ou de um quase-mercado. Nesse sentido, havia necessidade de contrapor a esse discurso ideológico, meramente empírico, um discurso apoiado em termos científicos. Qual é o enquadramento sócio-político e económico em que surgem estes rankings?
A publicação dos rankings em Portugal surge no âmbito de uma ofensiva claramente conservadora em relação à escola, reabilitando simbolicamente alguns dos discursos e dos temas do Estado Novo, como a questão do mérito e do esforço, fazendo tábua rasa de toda a pesquisa e investigação que tem sido feita em Portugal e a nível internacional na área da psicologia, da sociologia, da antropologia sobre este tema. A esse propósito, diria que alguns sectores da sociedade portuguesa são hoje atravessados por um conjunto de pressupostos ideológicos que, aparentemente, revelam uma nostalgia sobre a qual seria interessante reflectir...
Porquê razão pensa que essa nostalgia renasceu?
Na minha opinião, e partilhando a perspectiva dos meus colegas António Magalhães e Steve Stoer, da Universidade do Porto, há actualmente uma grande pressão sobre a escola - que não é típica apenas de Portugal -, marcada por um reposicionamento do capital cultural das classes médias face ao ambiente económico mais competitivo vivido actualmente nas sociedades ocidentais, e que, por essa via, se transforma numa espécie de novo mandato sobre o sistema educativo. Por outro lado, e mais uma vez partilhando a opinião dos meus colegas do Porto, em Portugal não tivemos uma concretização plena em termos sociais e económicos do Estado Providência, fazendo com que, após a revolução de 1974, não se tenha verificado uma consolidação de alguns dos princípios a ele ligados em termos educativos, como a igualdade de oportunidades. Nesse sentido, há, hoje em dia, muita gente no nosso país que se refere à desigualdade de oportunidades como uma inevitabilidade, e essa perspectiva deve ser combatida a partir de uma reflexão mais consistente e cientificamente apoiada. Refere no mesmo estudo que os rankings são claramente um organizador social e político do sistema educativo com o objectivo de produzir efeitos disciplinares nas escolas e que a ordenação das escolas por essa via constitui sempre uma visão simplificada da realidade educativa. Em que medida?
Os rankings constituem uma visão simplificada da realidade educativa na medida em que os dados utilizados para elaborá-los são exclusivamente baseados nos desempenhos cognitivos dos alunos, nomeadamente nos resultados dos exames, o que representa uma perspectiva extremamente redutora da realidade mais abrangente das escolas. Noutros países onde se publicam rankings utilizam-se também dados relacionados com a incidência sócio-cultural e com o passado escolar dos alunos, e, apesar de nunca poderem dar conta da riqueza dos processos educativos das escolas, eles alargam o seu âmbito. A realidade das escolas é muito mais abrangente do que aquilo que se possa pensar no exterior, envolve a forma de estar dos alunos, a ligação com as comunidades locais, a intervenção dos professores, etc. Nesta medida, eles constituem um instrumento claramente disciplinador das escolas e estratificador do sistema, nomeadamente do ensino secundário.
Partindo do exemplo de outros países, refere-se também à possibilidade de ocorrerem alguns efeitos sociais e educativos perversos decorrentes deste processo, que se distinguem ao nível da escola, dos alunos, das famílias e dos professores...
Sim, já que ele poderá orientar o trabalho das escolas exclusivamente para o desempenho dos alunos e para a satisfação das expectativas da opinião pública, reduzindo toda a dimensão educativa a esses aspectos, ao mesmo tempo que induz e exacerba os comportamentos competitivos entre alunos, escolas e professores. Outro dos possíveis efeitos é o de promover a selecção dos alunos - à semelhança do que acontece no ensino privado - de uma forma explícita ou implícita, ainda que esta última possa produzir mais efeitos negativos do que a primeira. E as escolas começam já, de certo modo, a organizar-se nesse sentido, havendo casos de uma ou outra escola pública que adoptaram esta atitude, o que tem reflexos a montante. Neste contexto, corre-se o sério risco de os rankings aprofundarem a hierarquização e a estratificação social que, quer queiramos quer não, já se verifica actualmente, nomeadamente ao nível das representações que a opinião pública faz sobre as escolas. Estas questões são extremamente graves do ponto de vista social, político e económico porque conduzem a um aprofundamento da escola enquanto instrumento de reprodução social.
A escola vista como um "produto" educativo
Acha que se corre o risco de os rankings poderem transformar-se também num instrumento de definição de políticas educativas?
Não tenho dúvidas quanto a isso. Os rankings contêm em si um conjunto de estratégias políticas que transferem, de certo modo, uma parte do controlo da escola por parte do Estado para os pais, regulando essa relação de uma forma próxima daquilo que é a visão do mercado.
Reduzindo os pais a consumidores de produtos educativos...
Sim. Tal e qual como quando compramos um produto e tomamos a nossa decisão baseados na percepção da relação desse produto com as nossas necessidades. No caso da educação há também essa lógica de escolha individual por trás, entendendo os pais como consumidores na perspectiva de que, calculando as vantagens em função dos seus próprios interesses, eles tenham um papel racionalizador dos ?produtos? que a escola oferece. É uma forma de transferir uma parte da regulação do Estado e da responsabilidade colectiva para uma parte do sistema, bem como uma forma de controlar indirectamente as escolas, induzindo-as a assumir um determinado número de estratégias, de projectos e de comportamentos que as tornem em bons "produtos". Apesar disso, acredito que as instituições não respondem automaticamente a estes estímulos e têm respostas diferenciadas. Haverá escolas mais preocupadas com a globalidade dos processos educativos e a forma como intervêm a nível do desenvolvimento cognitivo, afectivo, social, moral dos alunos, e outras, nomeadamente as privadas e algumas da rede pública, que poderão vir a alterar, de facto, a sua metodologia do ponto de vista da organização curricular e dos processos educativos para poder corresponder a esta expectativa.
A desigualdade do acesso à informação por parte dos pais pode também, na sua opinião, acentuar a estratificação e a organização social. Porquê?
Esse é outro dos aspectos pouco referido quando se analisa esta questão dos rankings. Isto, porque partindo do pressuposto que todas as famílias tenham acesso a essa informação e que ela seja completa, a maneira como elas a lêem e a descodificam é completamente diferente em função do capital cultural que possuem. E eu não tenho dúvida de que no nosso país são as famílias da classe média/ média alta aquelas que têm um acesso privilegiado à informação, que a conseguem transformar num conhecimento sobre a escola, sobre o sistema, sobre a possibilidade de elaborar um determinado tipo de projecto profissional futuro ou um projecto formativo para o filho, etc. E isso é uma vantagem enorme. Portanto, quando muita gente, e alguns governos, colocam ênfase no facto de a informação ser um importante instrumento de escolha, e na medida em que não estamos a lidar com produtos de supermercado, a informação constitui, neste caso, um instrumento de aprofundamento das desigualdades.
Em que perspectiva é que a sociedade civil tem ou não direito a essa informação e em que pressupostos é que esse direito se deve processar?
Mais uma vez afirmo que essa informação é quase como os rankings, na medida em que é um organizador social. Penso que o importante será discriminar quais as funções sociais dessa informação, porquê e de que forma ela é construída e quais os fins que se destina servir. E sobretudo pensar que ela será tão importante para os pais como para as escolas e para os professores. Por outro lado, ela deve ser uma informação completa, transparente, que dê uma ideia das desigualdades do sistema, permitindo ao conjunto da sociedade portuguesa conhecer as condições em que trabalha cada uma das escolas e perceber porque razão há escolas onde os alunos têm sucesso educativo e noutras não.
Como é que estão a reagir as escolas e os professores a esta questão?
Eu acho que a reacção é, de certa foma, díspar. Há casos de escolas públicas, é necessário dizê-lo, que alinharam neste jogo. Disso não há dúvidas. Mas, na esmagadora maioria dos casos, julgo que os professores sentem uma pressão crescente sobre eles e que o ranking motiva injustiças tremendas. Partindo dos contactos informais que estabeleço e das informações que vou recolhendo, alguns professores ficam muito desmoralizados porque são pessoas que se empenharam ao longo da sua carreira e fizeram um esforço tremendo para conseguir, por exemplo, que alunos que entram com enormes dificuldades de aprendizagem tenham algum avanço, e essa conquista, de repente, parece ir por água abaixo.
Mas há professores que manifestam a sua concordância... Porque essa diferença de percepção?
Em primeiro lugar julgo que é consensual que os professores não são monolíticos, e que também no interior das escolas há angústias, que se transforma em formas de auto-pressão. Depois, muita gente acredita que o ranking pode ser um elemento disciplinador. E isso não me espanta, porque há diferentes formas de pensar. A questão do ranking não é, talvez, tão grave quanto se possa pensar. Independentemente de ser-se a favor ou contra, o importante é haver uma reflexão crítica aprofundada sobre as questões que são levantadas pelos rankings e de que forma podem devem ser abordadas.
Aprofundar a avaliação centrada nos processos
Como é que encara os indicadores de performance internacionais, como é o exemplo do P.I.S.A.? Isso também é um tipo de ranking, não é?
Sim, e também muito disciplinador para os sistemas educativos dos países que nele são avaliados. Pessoalmente, considero que esse tipo de avaliação não tem muito valor, já que se insere numa actual tendência internacional de procurar medir tudo - os comportamentos humanos, as sociedades, os desempenhos -, mas à qual falta uma base científica sustentável. Depois, sabemos que há países que se preparam especificamente para esse tipo de avaliação. No ano passado, um investigador irlandês afirmou que não era de espantar a posição cimeira da Irlanda nesse tipo de ranking porque era o tipo de testes que os alunos estavam habituados a fazer e que as autoridades educativas os orientavam nesse sentido. Por outro lado, julgo que os rankings, em termos internacionais, constituem uma mais-valia política aproveitada pelos países, porque é importante para eles terem uma boa posição. Nesse sentido, alguns sistemas de ensino, como é o caso da Irlanda, ?treinam? os alunos para responderem a esse tipo de questões.
Comparando Portugal com os países da periferia, como a Grécia, a Espanha e a Irlanda, o nosso foi aquele que menos conseguiu vencer o atraso educativo, não concorda?
Claramente, porque também investiu muito menos. E não falo apenas em termos de investimento financeiro, mas sobretudo no investimento em termos de políticas educativas, dando confiança, suporte político e motivação aos actores no terreno e transformando a educação num objectivo a assumir. E essa situação não se verificou, exceptuando talvez na primeira década após 1974, período após o qual a escola se tornou no escape dos problemas do país. Talvez seja aí que resida o problema.
Ainda no livro "Um Olhar sobre os Rankings", refere-se que alguns dos termos próprios de um sistema de mercado, como eficiência, excelência, competitividade, prestação de contas, parecem ter substituído noções do Estado Providência, como igualdade de oportunidades, justiça social, democratização do ensino. Será que esta mudança de terminologia não corresponde a uma procura de respostas à ineficiência que caracteriza os serviços públicos, nomeadamente no que se refere à educação?
Não, penso é que os países da chamada semi-periferia, falando em termos de visão internacional, trabalham sobretudo em função do desenvolvimento económico, e isso não é só em Portugal que acontece. Na medida em que existe uma tentativa de dominar todos os discursos sociais dando ênfase aos aspectos económicos e de gestão, verifica-se a substituição de um conjunto de conceitos por noções que se relacionam com a qualidade e a eficiência, que, aliás, são redundantes. E isso não é exclusivo da educação. Veja-se o caso da saúde, por exemplo.
Mas concorda que essa noção de que os serviços públicos não correspondem àquilo que as pessoas esperam deles contribui para esse discurso?
Claro, como uma tentativa de resposta aos problemas a que se assiste, nomeadamente no sistema educativo. Há que admitir que temos problemas em termos de investimento na educação pública. O estranho é que, como resposta a esses problemas, seja aplicada a mesma receita em vários países baseada nos chavões da qualidade, da excelência, etc, quando há outros caminhos possíveis para os resolver. A nível da avaliação, por exemplo. Porque razão se levanta agora a questão dos resultados e não se aprofundou uma avaliação mais centrada nos processos?
Como foi o caso do plano de Auditoria Pedagógica (1997) e do Programa de Avaliação Integrada das Escolas (1999-2000), promovidos pela Inspecção Geral de Educação...
Precisamente, que incidiam sobre os processos. Independentemente da crítica que se possa fazer a esse tipo de abordagem, ela era muito mais interessante do que esta metodologia dos rankings, porque incidia nos processos e baseava-se numa perspectiva de apoio às escolas. Era nesse sentido que se devia ter aprofundado o processo de avaliação das escolas.
Defende, portanto, essa metodologia...
Eu defendo um caminho desse tipo. Não quer dizer que seja só esse. Mas defendo um caminho em que a avaliação sirva como um instrumento de apoio ao desenvolvimento das escolas, respeitando as suas diferenças.
A propósito de avaliação, reconhece-se que no caso francês a recolha e divulgação dos resultados dos rankings é encarada pela administração deste país sob a perspectiva do desenvolvimento de um programa de monitorização da educação, onde se enfatiza a auto-avaliação das escolas e do sistema, fazendo apelo a dados complementares sobre o tipo de escola, os currículos, o número de alunos e comparações entre os resultados nacionais e regionais. Julga que poderia ser este um dos modelos a aplicar?
Eu não concordo com o estabelecimento de rankings, inclusivamente nos moldes a que se referiu, embora reconheça que, no contexto da lógica tradicional de controlo da administração francesa, há um maior cuidado no tratamento desta questão. Concordo, no entanto, que haja um conjunto de indicadores, qualitativos e quantitativos, que possam ser utilizados no interior do sistema para melhorar o seu desempenho, perceber o tipo de investimento que os diferentes governos fazem e inclusivamente compará-los a nível internacional. Não nego a validade de indicadores desse género. Defendo é que esse conjunto de indicadores deve ser muito abrangente e dar uma imagem global da realidade educativa da escola.
Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa
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