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"Ser democrático não significa apenas deixar ooutro falar mas entender o que ele tem para dizer"

Reinaldo Matias Fleuri, professor da Universidade de Santa Catarina, no Brasil,
fala à PÁGINA sobre as relações interculturais na escola:

Numa época em que a intolerância global se parece ter abatido sobre o planeta e em que as diferenças culturais, mais do que uma riqueza, são encaradas como algo a suprimir, Reinaldo Matias Fleuri é um "utópico" que insiste na necessidade de a escola se assumir cada vez mais como um espaço de tolerância e de cruzamento da diversidade. Professor titular do Centro de Ciências da Educação da Universidade Federal de Santa Catarina, no Brasil, Fleuri centra a sua investigação em áreas como a educação popular, os movimentos sociais, a educação intercultural e a formação de educadores.
A PÁGINA aproveitou a sua passagem pelo Porto para o entrevistar e abordou temas pertinentes à escola actual, como a necessidade de reforçar a aprendizagem das diferenças através da educação multicultural ou insistir no papel do professor como mediador da diferença e não como promotor da hegemonia cultural. Pelo meio, Fleuri revela alguma da experiência brasileira neste campo e comenta a recente polémica da proibição de sinais religiosos nas escolas francesas, mais conhecida como "Lei do Véu".

Numa altura em que as questões relacionadas com a diferença e a identidade cultural se assumem como um dos principais temas da actualidade na escola, a multiplicidade de termos em torno de uma mesma ideia - multicultural, transcultural, intercultural - tende a dificultar, por vezes, a compreensão deste fenómeno.  Afinal, o que significa cada um destes conceitos e em que contexto se aplicam?
           
Hoje em dia verifica-se um intenso debate sobre as questões da relação entre os diversos grupos culturais, coexistindo, nesse âmbito, várias propostas e concepções de abordagem que, por vezes, usam os mesmos termos para designar conceitos diferentes ou afirmam as mesmas coisas a partir de termos diferentes.
Tome-se o exemplo do conceito de ?educação multicultural?, utilizado nos países anglo-saxónicos para designar a luta pela paridade de direitos entre diferentes grupos sociais e culturais na sociedade, que na Europa é habitualmente traduzido pelo conceito de ?educação intercultural?. Certos autores, como Stephen Stoer e Luísa Cortezão, usam o termo ?educação inter/multicultural? para se referirem a esse conjunto de movimentos, propondo não só o respeito mútuo das especificidades de cada grupo cultural mas também a relação e a interacção entre eles.
Já o termo ?transcultural? refere-se à ideia de encontrar os valores comuns das diferentes culturas que permitem criar uma base de entendimento tendo em conta essas mesmas especificidades culturais. É um conceito que se refere especialmente aos processos de miscigenação que ocorrem na inter-relação entre diferentes grupos sociais e onde se trabalha com as zonas de fronteira, os ?entrelugares? que se constituem entre os diferentes movimentos.
Em relação a toda esta problemática há dois aspectos que me parecem importantes referir. Em primeiro lugar, considerar que é impossível reduzir a um único conceito esta multiplicidade de conceitos, de ideias e de propostas que se diferenciam entre si, e que, mais do que um obstáculo, constituem uma grande riqueza na medida em promovem o diálogo e a compreensão do ponto de vista do outro.
O segundo aspecto que me parece importante salientar refere-se à explicitação do eixo fundamental de toda esta questão, ou seja, de que forma é possível promover a unidade e a relação entre diferentes grupos, culturas e sujeitos sem que essa relação e essa unidade anule as diferenças, mas, pelo contrário, potencialize o desenvolvimento de cada um deles.

Como é que a escola tem encarado e trabalhado este tema da multi/inter/transculturalidade?

Este problema põe em cheque toda a proposta monocultural da escola, e o desafio que se coloca hoje é o de saber como promover diferentes processos de desenvolvimento, partindo de distintos lugares subjectivos culturais, geracionais e sociais, e conseguir chegar sempre à diferença.

Mas, concretamente, como está a responder a escola a este desafio?

Eu acho que aqui se coloca uma questão a que eu chamaria ?salto lógico?. Nesse sentido, gostaria de contar aos nossos leitores uma pequena história, da autoria de Edwin Abbot, que poderá ajudá-los a esclarecer a minha ideia. O livro de Abbot, intitulado "Flatland" (Planolândia), conta a história de um país onde os habitantes são todos figuras geométricas de duas dimensões. Um dia, o senhor quadrado foi de visita a um outro país, o país da Linhalândia, e ficou perplexo pela forma como aquele povo conseguia viver numa única dimensão, onde tudo se resumia a pontos e linhas.
O senhor quadrado voltou à sua terra preocupado e pensava: ?Será que existe um outro país, ainda mais diferente? Como é que seria se vivêssemos numa outra dimensão? Como é que eles nos veriam??. Esta questão tornou-se ainda mais complicada quando o neto chegou da escola com um problema de matemática: ?Na matemática, o dois ao quadrado equivale a uma representação geométrica de um quadrado de dois metros de cada lado. Como é que se poderia representar um dois ao cubo?? perguntou a criança. O avô disse que isso era impossível e mandou o menino dormir. O facto é que ele se encontrou diante de um paradoxo que colocava em cheque o próprio contexto lógico que sustentava essa afirmação.
Então, a superação do paradoxo só é possível a partir de uma elevação do nível lógico. Só se pode resolver os problemas insolúveis no plano da bidimensionalidade se nos colocarmos no plano da tridimensionalidade e assim por diante. São esses problemas que são colocados à escola do currículo monocultural.
É impossível para um professor que tem de se limitar a um programa com prazos pré-estabelecidos, a horários rígidos, que tem de realizar exames, atender à diversidade de uma turma com 20, 30, 40, 50 crianças, que por vezes, inclusivamente, comunicam de uma forma diferente, que podem ser surdos ou cegos, que falam uma outra língua... Como o professor tem que garantir um processo homogéneo, um método único de ensino do conteúdo curricular, ele vê-se forçado a usar uma estratégia para reduzir as diferenças à hegemonia. Tudo o que aparece como diferente é incorporado num programa único.
É preciso perceber que o processo educativo não se dá numa sequência linear e progressiva, mas numa relação entre as pessoas, que são desafiadas pelos problemas que enfrentam na sua vida, na sua prática quotidiana. Esta concepção de educação coloca a relação de conhecimento não só entre um sujeito e um objecto, mas na relação entre sujeitos que são mediatizados pelo mundo, tal como referia Paulo Freire.
Concluindo, a escola tem procurado adaptar-se a este "salto lógico" procurando desenvolver experiências de projectos de investigação-acção, baseados na relação entre as pessoas, e compreender e enfrentar os problemas na sua prática. Mas isto implica uma outra concepção de currículo, de programa pedagógico.
           
Esse conceito de educação implica a necessidade de se repensar e ressignificar a figura do educador. Como vê o papel do educador nessa perspectiva que tem vindo a defender?

Eu entendo o papel do educador nesta perspectiva inter-cultural ou dialógica, isto é, com base numa relação que encare a educação não como uma mera transmissão de conhecimentos mas como uma relação entre pessoas que procuram compreender e enfrentar os seus problemas. Entendendo essa relação dialógica como o factor fundamental da educação, e entendendo também que cada sujeito não é um indivíduo com uma essência única, mas com uma história, que participa em diferentes contextos e se constitui em diferentes identidades culturais, então ela passa a ser entendida como uma relação entre os sujeitos e os seus respectivos contextos culturais.
Nesse contexto, a tarefa do educador, mais do que transmitir um modelo de cultura de conhecimento científico, passa por promover e criar um processo de mediação para que as pessoas possam interagir, enfrentar os conflitos e os problemas comuns, procurando a partir dos seus respectivos referenciais culturais, das suas experiências, das suas histórias de vida as formas e os elementos para compreender e para resolver os problemas. Nessa medida, o educador deve ter como fonte de recursos teóricos, de conhecimento, não apenas a cultura escrita, letrada, mas as culturas vivas que são património de todas as pessoas e comunidades.
           
Nesse sentido, e abordando um tema caro a Paulo Freire, de que forma pode a cultura popular ser um instrumento de promoção dos processos educativos?

A cultura popular, tal como ela é designada, é, na realidade, constituída por uma trama muito complexa de culturas. Até à década de 60, 70 existia uma contraposição entre a cultura erudita ? personificada na cultura académica universitária ? e a cultura popular, entre a classe dominante e a classe dominada. Hoje em dia essa relação complexificou-se e procura-se compreender as múltiplas dimensões, processos e culturas que constituem cada fenómeno. Assim, hoje entende-se a cultura popular como a trama das relações entre os diferentes sujeitos culturais, que desenvolvem padrões de compreensão diferenciados, e o grande desafio que se coloca é o de potenciar as interacções que se estabelecem entre eles. 
No contexto escolar, por exemplo, este desafio é concretizado através do desenvolvimento das mediações entre questões de género, da relação entre homens e mulheres, dos homossexuais, de geração, de classe, já que todas essas dimensões são constitutivas de cada sujeito.
Para responder concretamente à sua questão, a cultura popular pode contribuir para o desenvolvimento do processo educativo em primeiro lugar na medida em que procure compreender não só o que cada um tem a dizer, mas os contextos a partir dos quais cada um o afirma, ou seja, não se trata apenas de dar a palavra às pessoas mas compreender o que elas dizem e trabalhar no sentido de compreender os contextos históricos, sociais, culturais, ecológicos do que elas dizem.
Em segundo lugar, essa possibilidade de interacção entre pessoas de culturas diferentes só ocorrerá se cada um dos sujeitos estiver decidido a isso, porque se cria uma zona de risco, de conflito, de tensão, mesmo de insegurança. Então, a segunda contribuição da cultura popular neste processo é trabalhar no sentido de tornar sustentável e potenciar as fricções que se constituem na relação entre os diferentes sujeitos.

Não é possível ensinar sem aprender

Tem com certeza acompanhado a recente polémica relativa à proibição do uso de símbolos religiosos ostentatórios nas escolas francesas, mais conhecida como a "Lei do Véu", já que a comunidade mais visada é, precisamente, a muçulmana. Qual é a sua opinião acerca da posição do governo francês?

A escola francesa tem uma tradição laica que pressupõe que a garantia do direito de igualdade entre os estudantes implica impedir que uma ideia, uma crença ou uma ideologia predomine sobre as outras. É com base nesta crença que as autoridades francesas afirmam que a escola não deve tornar-se num espaço onde se manifestem símbolos religiosos de uma determinada religião porque isso colocaria as outras em situação de desvantagem.
No entanto, considero que neste pressuposto existe um equívoco de fundo, já que se confunde a igualdade com a homogeneidade. O segundo equívoco é que ao pretender garantir a igualdade de direitos pela imposição de uma norma se possa garantir uma igualdade de direitos. Na minha opinião, a igualdade de oportunidades só se constitui pelo respeito e pela potenciação das diferenças, não pela sua eliminação.
Garantir a igualdade de oportunidades significa proporcionar não só a possibilidade de cada um poder manifestar o seu referencial cultural, mas de produzir espaços e estratégias de diálogo, de interacção, de compreensão de um todo, já que é a partir daí que se desenvolvem os múltiplos processos de solidariedade.
No caso do véu, a imposição legal de uma norma que nega a manifestação de diferenças impede o diálogo, dificultando, desse modo, a explicitação do conflito e a construção de soluções para o mesmo.
           
Como é abordada no Brasil a questão das diferenças culturais na escola, nomeadamente as de carácter religioso?

Eu penso que no Brasil predomina uma certa tradição de homogeneização cultural. Sendo um país oficialmente católico, todas as demais religiões tendem a ter um papel subalterno. Mas creio, apesar de tudo, até pela própria história de miscigenação do Brasil, que existe um forte respeito mútuo, que por vezes pode ser confundido com tolerância ou indiferença em relação ao outro. Mas não existe nas escolas essa perspectiva radical de afirmação como acontece em França.
A escola no Brasil possui tradicionalmente um padrão monocultural, com um currículo, estratégias didácticas e mecanismos de avaliação que hierarquizam as crianças e as práticas educativas, apesar de no quotidiano da instituição escolar estar presente a emergência dessas diferenças. E quando elas não são enfrentadas e resolvidas pela iniciativa dos professores, criam-se múltiplas formas de confronto e de solucionamento entre as próprias comunidades.
As religiões afro-brasileiras, por exemplo, foram, no passado, proibidas. A forma de resistência encontrada por esses grupos sociais passava por camuflar a religião afro com símbolos católicos. Isso criou práticas sincréticas que, ao mesmo tempo, são espaços de resistência mas também espaços de diálogo, de apropriação dos valores e dos símbolos do outro. Através deste mecanismo essas práticas religiosas acabaram por ser reconhecidas e legitimadas, convivendo, eu diria, sincrecticamente, sem perceber os limites e as diferenças em relação às demais religiões.
           
Quem fala nos símbolos religiosos, fala também no próprio vestuário e na forma como os alunos se apresentam na escola. As notícias que dão conta da proibição do uso de certas formas de indumentária, principalmente em escolas inglesas e francesas, são cada vez mais frequentes. Será que a escola deveria, mais uma vez, fechar-se a essas diferenças ou, pelo contrário, aceitá-las de forma que, tal como já referiu, isso constitua um enriquecimento cultural? A questão da indumentária é algo que muitas vezes passa despercebida aos adultos mas que para os jovens assume uma grande importância, não concorda?

Eu acho que uma escola ou uma prática pedagógica que se queira dialógica precisa de saber potenciar essas formas de comunicação. Ser democrático não significa apenas deixar o outro falar mas entender o que ele tem para dizer. Não só através das palavras, mas através de todas as suas formas de comunicação ? a comunicação corporal, a comunicação visual e outras múltiplas formas de expressão. Os alunos expressam significados que muitas vezes a escola ou não está preparada ou não possui instrumentos eficazes para compreender e superar. Eu penso que se deve tentar superar essa visão da norma, habitualmente ligada à proibição, ao castigo ou à recompensa, e desenvolver olhares diferentes para facilitar o diálogo e a compreensão mútua.
Eu considero que o educador pode mais facilmente educar e até mesmo conquistar a confiança, a parceria e a interlocução com as crianças e os jovens - mesmo que estes se manifestem, por vezes, de uma maneira contestatária, seja visualmente, fisicamente ou verbalmente -, se procurar entender o que eles querem afirmar através da sua atitude ao invés de simplesmente dizer ?está certo? ou ?está errado?. Porque não perguntar ?o que quer ele dizer com isto?? ou questionar-me a mim próprio ?será que está certo ou está errado??.
São duas perguntas aparentemente simples mas que demonstram uma lógica e uma epistemologia diferentes. A epistemologia do ?certo? e do ?errado? é como trabalhar na primeira e na segunda dimensão, como eu há pouco referia. É reduzir aspectos tridimensionais ou históricos a uma dimensão plana. Quando nos questionamos acerca do que um aluno pretende afirmar colocamo-nos numa outra dimensão, eu diria tridimensional ou quadrimensional, que implica tempo e relação entre as histórias, e com isto multiplicamos ao cubo as possibilidades do nosso relacionamento.
Em resumo, eu considero que lidar com as manifestações de diferença implica colocarmo-nos numa atitude de curiosidade, de diálogo, de compreensão e, principalmente, deixarmo-nos interpelar, colocando em causa os nossos próprios padrões de conhecimento para entendermos o outro. É esta ?crise? interior que nos permite evoluirmos e fazermos evoluir o próprio conhecimento. É por isso também que não é possível ensinar sem aprender. Aliás, só com uma atitude de aprendizagem face ao outro podemos desenvolver o processo de ensino e de transmissão de conhecimento.

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 139
Ano 13, Novembro 2004

Autoria:

Reinaldo Matias Fleuri

Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Reinaldo Matias Fleuri

Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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