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A criança, esse valor de câmbio

Para a Escola de Beslan

Temos hábitos. Hábitos de conceitos. Hábitos de significados. Hábitos emotivos. Os primeiros, são de grande facilidade de definir: um conceito diz o que uma coisa é, uma actividade ou um facto. O significado, diz-nos a abstracção dessa realidade. Como valor, o tempo usado em fabricar uma mercadoria. Como câmbio, a utilidade de trocar um bem que eu faço por um bem que não tenho, intermediado pela abstracção dinheiro ou capital. E fica assim, rapidamente tudo definido e no seu sítio racional. Os emotivos, nem conseguem ser hábitos. Ou, por outra, temos o hábito de ter emoções e sentimentos, como referi no jornal de Julho deste ano. Texto que referia conceitos abstractos de sentimentos. E, como refere a dedicatória, bom para o que eu costumo denominar processo de ensino e aprendizagem.
Mas, no dia em que sabemos de forma pública da existência de crianças trocadas no mercado humano, o que para Freud em 1895 era apenas denominado prazer, em 1905, passa a ser o prazer sexual de adultos que abusam de crianças. Lendo o texto, dedicado ao facto conceptualizado de pedofilia, crime, hoje, para dois anos de prisão, passou a ser de praça pública, sem outro castigo que não seja deter preventivamente por um número de dias, que até parecem poucos, mesmo que ainda o crime não esteja provado. Existe prisão preventiva de apenas um dia, o direito de habeas corpus, não usado entre nós: mais um castigo ao crime. Não é o nosso caso, não parece que venha a ser mudado em breve, nem tampouco é esperada uma modificação ao Código Penal até ser resolvida a pedofilia não ritual que costumamos ter; não ritual, insisto, porque a ritual faz parte de um sentimento emotivo partilhado por adulto e criança, dentro de uma genealogia definida com anos de antecedência e entre pessoas que passam a desempenhar outros papeis entre eles, como é o caso de um dos parceiros passar a ser o pai dos sobrinhos do outro, como manda a lei costumeira. Este crime é hediondo, faz anos que existe. Tenho-o denunciado aos gritos neste jornal e nos meus livros.
Mais hediondo ainda, sem nome e sem qualificação, é o outro crime que não tem conceito: usar as crianças como escudo para uma luta política. Escudo material, esse que coloca um pequeno ou pequena numa janela para prevenir disparos de um exército mandado para defender os interesses de um país imperialista que apenas deseja, cobiça diria melhor, os portos de um país autónomo e independente para o seu comércio colonial. Devido as mortes causadas durante longo tempo, o povo invadido e cercado resolve tomar vingança e prepara, com antecedência, um ataque atroz, a ser realizado no dia da abertura das aulas. O dia de andar com os melhores fatos, com cara de maior alegria, de mães que acompanham os seus pequenos para a festa. E, sem saber como e qual o minuto, uma bomba estala e mata os primeiros....pequenos. Mais de 265 funerais foram realizados ao longo de três dias no país colonialista, esse país que todos respeitámos um dia porque lutou pela igualdade, pelo cuidado das pessoas, as fontes de trabalho certas, os salários com mais valia.... Os países, nesse tempo dominados, eram tratados com prisão, perseguição, ausência de segurança, ignorância para os pequenos, até o sistema, pensado por Bukhanin, Lenin, Trotsky, Marx, Durkheim, Mauss, Kerensky e outros, derruba-se e entra a ditadura que hoje choramos e que nos faz chorar.
Nunca teriam pensado os pais fundadores que as crianças também seriam, moeda de câmbio! Seres para a troca, eles já o eram: trabalhavam nas indústrias que precisavam de mão-de-obra de pequeno tamanho para complementar um bem. Mas eram pagos, tinham aulas, tinham escolas, tinham horário, tinham o orgulho do contributo à Pátria. Até ao dia da vingança, da morte de centenas, faz apenas três semanas. Com um povo que deseja tomar as armas e entrar a saque no colonizador e matar não apenas assassínios, bem como autoridades responsáveis pelo sacrifício de morte na cruz da troca de câmbio sem valor de esse futuro humano da História.
E o tribunal internacional da Der Hägen ou La Haia? Porquê apenas Nüremberg? Porquê apenas Bósnia? Porque não o Chile? E que foi feito da Argentina e das mães da Praça de Maio? E os assassínios livres ainda e com o Prémio Nobel da Paz nas mãos? Ou os imunes, acusados, sujeitos de delito, que andam pela rua? Ou a ganhar uma eleição em breve? Em nome do quê? Da defesa do terrorismo, que mata ninhadas de crianças e rapta adultos como mais um escudo que entra nas casas em nome da defesa de um conceito de horror definido pelos Estados colonialistas? Esse que adia, porque sim, o começo das aulas, tal como autoriza ao exército torturar prisioneiros de guerra. E a Convenção de Genebra? E os colonizadores? E os barcos ? hospitais corridos por fragatas ao mar internacional? E a Convenção? E Besla? A mudança de hábitos?


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 138
Ano 13, Outubro 2004

Autoria:

Raúl Iturra
Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa
Raúl Iturra
Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa

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