Por razões históricas, sociais e culturais muito diferenciadas, muitos Estados-nação ainda continuam agarrados a uma concepção restrita de cidadania, muito longe, portanto, de uma concepção avançada que signifique, não apenas o reconhecimento de direitos cívicos e políticos mas também a realização efectiva de direitos (sociais, económicos, culturais, educacionais?)
Em recente viagem ao Brasil para, entre outras coisas, atender a compromissos académicos e participar em alguns congressos de educação ? o mais importante dos quais foi, sem dúvida, o Fórum Mundial de Educação (III edição), realizado em Porto Alegre entre 28 e 31 de Julho ?, aproveitei o facto de estar mais a Sul para ir conhecer o Parque Nacional de Iguaçu e as suas famosas cataratas, declarados Património Natural da Humanidade pela UNESCO em 1986. A experiência foi muito estimulante e será certamente inesquecível, como não poderia deixar de ser, sobretudo porque, depois de um primeiro dia nebuloso e com persistente garoa (chuva miudinha) ? permitindo, mesmo assim, um ambiente envolvente e propício a estranhas sensações de (des)ocultação e encantamento ? pude, no dia seguinte, já com um sol radiante e um céu límpido, atrever-me a sobrevoar as Cataratas de helicóptero, confirmando assim, com outros ângulos de visão, a imensidão e beleza da paisagem preservada e o prodígio da Natureza. Estando eu num país (quase um Continente) repleto de riquezas naturais e dotado de um povo criador, alegre, inteligente e imaginativo, mas, ao mesmo tempo, num país cheio de grandes e, muitas vezes, chocantes contrastes e injustiças sociais, voltei a sentir, de forma mais concreta, a importância das lutas (nacionais e transnacionais) por um Mundo com maior igualdade e justiça, onde todos os seres humanos possam viver e concretizar os valores da liberdade e da responsabilidade, sendo portadores efectivos de direitos fundamentais, juridicamente consagrados e efectivamente praticados. Continuo, por isso também, a acreditar, de forma cada vez mais convicta, que a melhoria da Educação (simultânea e articuladamente comprometida com a qualidade científica, pedagógica e democrática) nunca foi tão urgente como hoje em todos os países, onde certamente incluo Portugal e Brasil, onde muitos dos Direitos Humanos Básicos ainda não foram completamente interiorizados como direitos fundamentais e onde, por isso mesmo, o refluxo da democracia é mais fácil de ocorrer perante o avanço inescrutável e insidioso de um capitalismo cada vez mais obsessivo na procura de processos fáceis de acumulação, a nível nacional e mundial. Por razões históricas, sociais e culturais muito diferenciadas, muitos Estados-nação ainda continuam agarrados a uma concepção restrita de cidadania, muito longe, portanto, de uma concepção avançada que signifique, não apenas o reconhecimento de direitos cívicos e políticos mas também a realização efectiva de direitos (sociais, económicos, culturais, educacionais?) ou, mais longe ainda, que nos predisponha para a imaginação política de outras cidadanias (transnacionais, mundiais ou globais) onde, com os Estados-nação e para além deles, se reinventem outras possibilidades e outros espaços de emancipação. Retomando o início deste texto, na minha recente visita ao Sul do Brasil conheci uns simpáticos seres chamados Quatis (palavra derivada do étimo tupi kwa'ti), simpáticos mamíferos de focinho longo e cauda com anéis escuros, que são uma espécie de ex libris do Parque Nacional de Iguaçu e nos quais reconheci (partilhando a sugestiva imaginação crítica de um jurista brasileiro, amigo e companheiro de viagem), serem eles próprios seres portadores de direitos (como o direito à liberdade e à identidade) que, infelizmente, não são ainda direitos elementares reconhecidos a milhões de seres humanos. Passeando livremente por entre os visitantes, sendo respeitados nos seus hábitos alimentares e na sua forma de agir, os Quatis partilham um espaço que é um exemplo concreto do que pode significar a defesa e preservação do "património comum da humanidade". Por iniciativa de outros seres, politicamente comprometidos com o aprofundamento da democracia, a liberdade e identidade dos Quatis podem agora beneficiar da consagração de uma nova geração de direitos: os direitos da terceira geração, ou seja, os direitos ecológicos que são direitos não apenas nossos, enquanto seres humanos, mas, sobretudo, direitos de todos os seres vivos que existem e que ainda hão-de vir para habitar a Terra. Sem o saberem, e ao contrário de muitos seres humanos, os Quatis não deixam de vivenciar e de anunciar formas de transição entre concepções de mundo e de cidadania.
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