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De viagem

Mesmo depois de B- a estrada meteu por uns prados planos e verdes. Só aqui e ali a extensão verde era 'cortada por um campo de restolho. Apesar da lama e buracos, a charrette andava depressa. Lá muito longe, ao nível das orelhas dos cavalos, o horizonte era atravessado por uma faixa azulada de flo­resta. Como era de esperar nesta época do ano, não se via vivalma.
Só depois de termos andado um bocado é que eu vi o primeiro ser humano. À medida que nas aproximávamos, as suas feições tor­navam-se mais 'distintas; era um homem de cara vulgar, envergando a farda dos Correios. Estava de pé, parado, na beira da estrada, e quando passámos lançou-nos um olhar indi­ferente. Logo que o deixámos para trás, notei um outro, na berma da estrada, com farda semelhante e igualmente imóvel. Observava-o cuidadosamente, quando a minha atenção foi alertada por uma terceira e quarta figuras estáticas, igualmente dispostas ao longo da estrada. Os seus olhos apáticos estavam fixos na mesma direcção, e as fardas desbotadas.
Intrigado com este espectáculo, levantei-me do assento para olhar por cima do ombro do cocheiro; de facto, mais à frente encontra­va-se outra figura erecta. Quando passámos por mais dois desses homens, a minha curio­sidade tornou-se irresistível. Ali estavam eles perfilados a uma considerável distância uns dos outros, ainda que suficientemente perto para me ser possível avistar o seguinte, em igual postura e dando-nos tanta atenção quanta os sinais rodoviários concedem aos via­jantes que passam. E mal passávamos um, logo outro entrava no nosso campo visual. Ia abrir a boca para perguntar ao cocheiro o significado daqueles homens quando, sem voltar a cabeça, ele se adiantou. «De serviço.»
Estávamos a passar por outra figura imó­vel, alhando indiferentemente para um ponto afastado.
"Como assim?», perguntei. «Absolutamente normal. Mantêm-se de ser­viço», e incitou os cavalas.
O cocheiro nãa mostrava intenções de me farnecer mais explicações, talvez pensando que era supérflua. Fazendo estalar o chicote de vez em quando, gritava aos cavalos e can­tinuava o caminho. Íamos passando por silvas, alminhas e salgueiros solitários, que logo fica­vam perdidos para trás; entre eles, a espaços regulares, podia ver as já familiares silhuetas.  
«Que espécie de serviço estão eles a fazer?», inquiri.
«Serviço do Estado, claro. Linha do telégrafo.»
«Como? Para uma linha telegráfica são precisos pastes e fio!»
O cacheiro olhou para mim e encolheu os ombros.
«Vejo que é de longe», disse. «É evidente que sabemos que, para um telégrafo, se pre­cisa de postes e fios. Mas este é um telégrafo sem fios. Era para termos um com linhas, mas roubaram os postes e não há fio.»
«Que quer dizer com não há fio?"
«Não há, muito simplesmente», disse, e gritou aos cavalos.
A surpresa silenciou-me por momentos, mas não tinha intenção de abandonar as minhas pesquisas.
«E como é que trabalha sem fios?.
«É fácil. O primeira grita a mensagem para o segundo, este repete ao terceiro, que repete ao quarto, e assim sucessivamente, até chegar ao seu destino. Não teria dificuldade em per­ceber como é, mas agora eles não estão a transmitir.»
«E este telégrafo resulta?»
«Porque não havia de resultar? Resulta perfeitamente. É certo que muitas vezes a mensagem é distorcida. Principalmente quando algum deles tem alguma pinga a mais. A ima­ginaçãa cameça a trabalhar e acrescenta palavras. Mas quando isso não sucede é ainda melhor que o telégrafo vulgar, com postes e fios. Ao fim e ao cabo, 0s homens são mais inteligentes. E não são danificados por tem­pestades, não necessitam de reparações, é uma grande economia de madeira, e nós temos falta de madeira. Às vezes há interrup­ções no Inverno. Lobos. Mas quanto a isso não há nada a fazer.
«E estes homens estão satisfeitos?", per­guntei.
"Porque não? Não é trabalho duro, só pre­cisam de saber palavras estrangeiras. E vai ser aperfeiçoado. O chefe da estação dos Correios foi a Varsóvia pedir megafones, para eles não terem de gritar tanto.»
«E se um for duro de ouvido?"
«Ah, esses não são aceites. Nem homens com defeitos de linguagem. Uma vez, empre­garam um que gaguejava. Conseguira o em­prego com cunhas, mas não ficou lá muito tempo, porque bloqueava a linha. Ouvi dizer que, junto ao marco do quilómetro vinte, há um que frequentou uma escola de teatro. É o que tem melhor dicção.»
Os seus argumentos deixaram-me confun­dido por instantes. Embrenhado nos meus pensamentos, não dei mais atenção aos ho­mens da estrada. A charrette dava solavancos, ao passar pelos buracos em direcção à flo­resta, que ocupava agora quase todo o hori­zonte.
"Está bem», disse cautelosamente, "mas não prefeririam ter um telégrafo novo, com postes e fios?»
"Céus, não!» o cocheiro ficou indignado. «Pela primeira vez é fácil arranjar emprego no nosso distrito, com este telégrafo, isso é que é. E as pessoas também já não têm de l'imitar-se a ganhar só os salários. Quando alguém espera um telegrama e está particu­larmente interessado em o não receber alte­rado, pega na charrette e vai ao longo da linha, deixando cair qualquer coisa no bolso de cada um dos rapazes do telégrafo. Afinal de contas, um telégrafo sem fios é um tanto diferente de um telégrafo com fios. Mais mo­derno.»
Distinguindo-se do barulho das rodas, eu ouvia um som distante, nem grito nem berro; uma espécie de lamento contido.
«Aaaaaaaaaeeeuuuuueeeeeeuuuuu.»
O cocheiro voltou-se no assento e colocou a mão no ouvido.
«Estão a transmitir», exclamou. "Vamos parar para poder ouvir melhor.»
Quando o ruído monótono das rodas parou, um silêncio total envolveu os campos. Nesse silêncio, o gemido que se assemelhava ao grito das aves num charco aproximou-se de nós. O homem do telégrafo pôs a mão no ouvido, pronto a receber a mensagem.
"Vai chegar daqui a pouco», sussurou o cocheiro.
Era verdade. Quando o último e distante aaaaaiiiiiaaa se extinguiu, saiu um grito pro­longado por detrás de um maciço de árvores.
Pa-a-ai mor-or-to fu-u-ner-al -qua- ar- ta- fe­e-e'i-ra.
"Descanse em paz», suspirou o cocheiro, e fez estalar o chicote. Entrámos na floresta.


  
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Edição:

N.º 137
Ano 13, Agosto/Setembro 2004

Autoria:

Mrozeck
Escritor
Mrozeck
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