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Os antecedentes de uma era

O meu novo alojamento ficava numa rua que fora, durante cinquenta anos, uma das principais artérias da cidade. O tecto alto do quarto de rés-do-chão parecia apoiar-se em duas janelas excessivamente altas e es­treitas e numa porta igualmente esguia ornada com maçanetas de bronze. Este quarto era constantemente habitado por um crepúsculo que desafiava o brilho do sol no exterior; só por volta do meio-dia recuava, momentanea­mente, para os recantos mais profundos sob o docel do tecto, não tardando a reocupar triunfalmente todo o quarto. Tudo o que se podia avistar da minha janela era uma fíleira de janelas idênticas no outro lado da rua, janelas cegas pela obscuridade que enchia o seu interior.
Mesmo rente ao parapeito e do lado de fora, ondulavam os chapéus dos transeuntes; era como se a cidade tivesse sido inundada e as águas arrastassem uma corrente de cha­péus de homens e mulheres, a recordar os donos afogados. O constante arrastar de pés que me chegava através das janelas fecha­das evocava-me continuamente um rio.
Um dia, entre a massa ondulante dos chapéus vi um absolutamente invulgar: um chapéu de coco. Passou pela janela e desapareceu. O rio escoava-se sem detenças. Pouco depois, tocaram à campainha e, ao abrir a porta, voltei a ver o chapéu de coco; estava na cabeça de um homem idoso que limpava meticulosamente os pés, apesar de o tempo ter estado seco durante toda a semana e de não existir tapete à entrada da porta. Tirou o chapéu e perguntou se podia entrar. Uma vez dentro, olhou em volta, puxou um jornal do bolso e disse: «Trouxe­-lhe a solução.»
«Que solução?»
Passou-me o Jornal. Era da cor dos domi­nós de marfim velho. O tipo de impressão há muito que caíra em desuso; as letras apre­sentavam hastes anémicas e tanto os topos como a parte inferior eram cortados por finas linhas horizontais. De relance, apanhei o começo de uma notícia: «6 de Junho de 1906. Esta semana em Baden-Baden...»
«A charada», apontou ele, dando pela mi­nha incompreensão.
Noutra página estava a charada e, ao lado, a solução, escrita com letra cuidada e a lápis roxo, cuja ponta fora molhada.
«Estou a ver.»
«Consegui a solução completa.»
«Sim.»
"Vim cá trazê-Ia, tal como se indicava nas instruções. Podia tê-Ia enviado pelo correio, mas pensei que seria melhor trazê-Ia por mão própria. Mas isto não é a editora?», inqui­riu, olhando para o mobiliário com descon­fiança.
«Não, já não é. Agora é uma casa parti­cular.»
«É pena. Já a resolvi por completo. Então agora onde fica a editora?»
Encolhi os ombros.
«Quando vim para cá, já era um aparta­mento.»
«E antes disso?»
«Não faço ideia.»
«Mas que pena! Resolvi-a sozinho, sem qualquer ajuda.»
«Talvez tivesse existido uma editora aqui», disse eu, «mas deve ter sido há muito tempo.»
Ele acenou com a cabeça.
«Sim, há cinquenta anos.»
O estúpido do homem começava a irri­tar-me.
«Mas que é que o senhor pretende com a sua charada? Não percebe que acontece­ram muitas coisas desde então?»
«Não é culpa minha se não sou um inte­lectual», disse num tom ofendido, «mas resol­vi-a toda sem ajuda de ninguém.»
Por momentos ficámos em silêncio. Só então reparei no título do jornal, o que me causou grande indignação.
«Terá a senhor consciência até que ponto esse jornal era um insidioso órgão da mo­narquia, servindo a política das minorias na­cionais divisionistas?»
«Foi num domingo», disse ele. «O meu tio tinha vindo visitar-nos. Trazia o jornal no bolso. 0 dia estava quente e tínhamo-nos sen­tado no jardim. O meu pai e o meu tio deci­diram jogar cartas. Eu também queria jogar, mas o meu pai não deixou. Disse que eu era novo demais e teria tempo quando fosse cres­cido. Despiram então os casacos e ficaram em colete. O meu tio pendurou o casaco numa cerejeira e quando começaram a jogar, tirei-lhe o jornal do casaco. Foi assim que comecei a resolver a charada.»
«E só acabou agora?» perguntei com ironia.
"Só. Era uma charada difícil. Conhece a palavra adequado? E havia outras ainda mais difíceis.»
«E então a Primeira Grande Guerra?»
«Estive na rectaguarda.»
«Você tem certa graça! Todas estas mu­danças, a agitação social, a república, o refe­rendo.»
«Acha que foi fácil? Em 1910, ainda nem sequer se sabia o que era um Zeppelin. Não conseguia imaginar. Só depois de juntar «Zip» e "pelt» e «in» ? e isto levou muito tempo e deu-me um trabalhão ? só então é que come­çou a fazer-se luz no meu espírito.»
«O senhor é impossível. A crise econó­mica de 1929, e você às voltas com a cha­rada...»
«Eu posso não ser muito esperto. Talvez o senhor pense que tive muito tempo. Mas tinha de trabalhar, meu caro senhor, tinha de ganhar a minha vida. Só à noite me podia dedicar à charada.»
«E que sabe o senhor da Guerra Civil Espanhola? E de Hitler? Que fazia nessa altura?»
«Mas não lhe disse já? Resolvi a charada sem ajudas. As palavras estrangeiras eram mais que muitas. Não foi brincadeira nenhuma. Mas ainda tenho uma cabeça em cima dos ombros.
«Você é um adivinho.» Estava a troçar dele. «Não me diga que passou a Segunda Guerra Mundial a deslindar a charada. O se­nhor é um verdadeiro Einstein, só que não inventou a bomba atómica. Não sabia como.»
«A bomba é outra coisa. A responsabili­dade não me cabe. Mas acha fácil para um velho, mesmo assim? Uma pessoa esquece-se de tudo quanto aprendeu na escola. E há tantas preocupações. Mas nunca me dei por vencido.»
Ri alto e despropositadamente. Ficou ofen­dido. Levantou-se e disse: «Não devia rir-se. Não inventei a bomba, mas a culpa não foi minha. Em 1914 estava na rectaguarda e, ainda antes de a guerra rebentar, fui atingido na cabeça por uma bala que fez ricochete. Isto açonteceu em Montenegro. O senhor está a rir-se, mas o pensamento humano deve ser respeitado. Eis a charada. O pensamento humano não morreu."


  
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Edição:

N.º 135
Ano 13, Junho 2004

Autoria:

Mrozeck
Escritor
Mrozeck
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