Página  >  Edições  >  N.º 134  >  «A escola era um sacrifício?

«A escola era um sacrifício?

horas infinitas a ouvir coisas que não me interessavam nada»

MÁRIO VENTURA
entrevistado por Luís Souta (texto e fotos)
colaboração de Mónica Martins

Mário Ventura Henriques nasceu, acidentalmente, em Lisboa, na Maternidade Alfredo da Costa, em 1936. Apesar disso, e da sua família ser de Santarém, considera-se um «alentejano por afeição». Vive actualmente entre Setúbal e Montemor-o-Novo, onde tem casa.
Jornalista (Diário Popular, 1958-72; Seara Nova, na década de 60; Diário de Notícias, 1975 e 1979-88; fundou e dirigiu o semanário Extra, 1977-78) e correspondente da imprensa espanhola em Portugal durante cerca de vinte anos (Informaciones, Noticiero Universal, Mundo Diario, Rádio Antena 3). Dirigiu a edição portuguesa da revista Cambio 16. Foi correspondente do Diário de Notícias em Espanha, de 1993 a 2000. Gestor de uma empresa de publicações (1972-73). Fez parte da Direcção Sindicato Nacional dos Jornalistas, na década de 60.
Candidato pela CDE, em 1969, por Évora. Presidente da Assembleia Municipal da Amadora, 1994-97.
Presidente da Associação Portuguesa de Escritores, 1990-92. Fundador e actual Director do Festival Internacional de Cinema de Tróia (já na sua 20ª edição).
Recebeu o Prémio de Ficção Pen Club e o Prémio Cidade de Lisboa (Vida e morte dos Santiagos, 1986) e novamente o Prémio de Ficção Pen Club, em 1991, com o livro Évora e os dias da guerra.

Em 2003 comemorou os 40 anos de carreira literária. Que balanço faz deste período em que publicou 16 livros (e digo 40 anos porque parto do princípio que não inclui os seus trabalhos saídos em 1951, 56 e 58)?
Não, não entram? Praticamente eram trabalhos escolares, pouco mais do que isso, escritos com 14 ou 15 anos? Em mim, a brotoeja literária começou muito cedo, aos 12 anos já escrevia histórias. Já tinha a ambição de ser escritor.

Tem escrito romances, narrativas, reportagens, alguns contos, traduções?
Gosto de traduzir por prazer não por ofício. Houve uma época em que fiz bastantes traduções. Mas a tradução cansa-me rapidamente, não porque seja uma perda de tempo traduzir um livro, mas porque pode gerar uma espécie de promiscuidade: por vezes, estou a traduzir um livro e acabo por ter uma intimidade excessiva com o estilo do autor, estilo esse que nada tem a ver com o meu.

Tem medo que esse estilo se cole ao seu?
Que passe a perturbar o meu métier, isso sim. Se tivesse uma continuidade muito grande como tradutor, fatalmente, acabava por perturbar a minha própria escrita e de uma forma negativa. É muito difícil criar uma identidade própria, e tudo o que é exterior acaba por ter influência, como teve o jornalismo. E no entanto optei pelo jornalismo, por achar que era a única profissão que me podia ajudar como escritor.

Ingressou no jornalismo com esse propósito?
A partir dos 15 ou 16 anos pensei que a única coisa que me convinha ser, neste país, era jornalista. Não era como empregado de escritório, todo o dia metido numa sala, que adquiria experiência. Onde é que eu podia adquirir uma experiência de vida que fosse útil à escrita literária? A única que via era o jornalismo. Fixei essa meta, e um dia o Diário Popular abriu um concurso de textos, concorri e ganhei. Três meses depois estava no jornal.

E aí começou uma ligação ao jornalismo que se prolongou por três décadas e que interferiu bastante com a sua escrita ficcional.
Aceito que a facilidade excessiva da escrita jornalística possa ter influenciado os meus primeiros livros. A escrita jornalística é apressada por obrigação. Havia uma imposição de horas, de prazos e isso obrigava-nos quase a uma escrita automática, de jacto, não havia tempo para meditar? Mais tarde deixei de fazer concessões e passei quase exclusivamente para a reportagem. Deixou de haver o problema da notícia diária que tinha de se fazer na hora. Queria as coisas como se fossem textos literários, escrevia com muito cuidado, demorava o tempo que demorasse (e daí nasceram alguns livros).

Esse foi então um caminho premeditado?
Foi. Desde que um dia um professor de português me escreveu no caderno «tens um futuro como escritor?», isso nunca mais me saiu da cabeça, tornou-se quase uma obsessão. Lembro-me que à espera de ser jornalista recusei empregos, não queria cair na armadilha de me amarrar a um sítio, ficar ali e depois já não ser capaz de sair?

Viajou imenso. O objectivo era ganhar experiência para escritas futuras?
Eu julgava que sim, mas essas coisas nunca são deliberadas. No fundo, o que me deu foi experiência humana. Mas esses lugares e essas geografias nunca influíram muito nos meus livros, excepto um que escrevi em África e que desapareceu, todo cortado pela censura.

E como vê a imprensa escrita de hoje?
Predomina a sub-cultura de consumo imediato e, de preferência, que seja altamente rentável. O objectivo é sempre esse. Mas o fenómeno é geral.
Se formos ver, o jornalismo que se faz hoje nada tem a ver com o passado, em termos de qualidade. Não sou saudosista, nem nostálgico do passado. Mas o que me querem impingir hoje é de uma falta de qualidade atroz: sintaxe não existe e erros de ortografia não faltam.

Classifica Quarto Crescente como «a ficção da verdade», parecem dois opostos inconciliáveis.
Sempre foi um meu debate interior, a distância entre a realidade e a ficção. Para já, nunca acreditei muito na história da ficção pura, acho que a realidade e a experiência que o escritor conhece, estão sempre nos seus livros. O que não é o mesmo que dizer que o escritor está sempre nos livros que escreve. Ou antes, está sempre mas de uma forma recriada ou ficcionada. Tenho um livro que se chama Outro Tempo, Outra Cidade? (de 1979) que tem como subtítulo «a memória como romance». Não se trata de mistificar nada, não há uma separação rígida entre realidade e ficção, nem nos devemos perturbar muito por causa disso, porque quando se escreve um romance, é evidente que a realidade está a ser recriada pela imaginação, e é a isso que chamamos ficção. Não chamamos ficção a coisas que nascem do zero absoluto. Mas mesmo que tal aconteça, a história está sempre inserida num contexto que é fruto da experiência do escritor. No fundo, é a mesma coisa que eu coloquei no subtítulo do Quarto Crescente. Porque a própria memória nos atraiçoa muitas vezes.

Afirma isso numa entrevista «não existem memórias fiéis».
Costumo dizer que, em certos episódios do livro, tinha três cenários, ou seja, a minha memória dizia-me que aquele episódio podia ter acontecido de três maneiras diferentes. O que é isto? É uma simples partida que a memória nos faz ao fim de muitos anos? E aqui houve uma escolha.

No que respeita à escola, os acontecimentos relatados em Quarto Crescente não fogem muito ao que se passou?
Não. Tanto quanto a memória o permitiu ? e deixo sempre esta ressalva -, não foi preciso inventar nada.

São memórias que perduram no tempo, tem essa ideia?
Tenho, e não percebo porquê. Realmente, tenho memórias muito nítidas de períodos remotos, e depois há outras épocas que me falham completamente. Mas, quer da infância quer da adolescência, tenho memórias muito nítidas.

Foram, de facto, «dias difíceis na escola»?
Foram. A escola era um sacrifício. Não sei se era assim para todos. Nunca fui muito dado a brincadeiras de escola. Penso que, para a maior parte dos jovens, a escola justificava-se pelos períodos de recreio, onde se faziam toda a espécie de tropelias próprias dessas idades. Mas quando se entrava na aula, aquilo era uma paragem no tempo. Havia um clima de respeito temeroso, se havia um sopro, lá estava o professor a cair em cima, «o menino soprou, esteja calado!» Achava aquilo um pesadelo, todas aquelas horas infinitas a ouvir coisas que não me interessavam nada, a mim em particular, mas com certeza que a outros também não. Mas era uma coisa que era preciso fazer? ou ficavam em casa a suportar os pais, ou então iam para ali a olhar pela janela, à espera que tocasse a campainha. Era o reflexo da sociedade em que se vivia, com um peso às costas? mais um dia? A única amenidade no meio daquilo era o convívio com os colegas.

Passou pela Escola Machado de Castro e depois pela Marquês de Pombal onde teve o tal professor que lhe disse que ia ser escritor.
Era um professor notável, o único que recordo hoje como um professor excepcional - e não é por me ter dito isso. Era um indivíduo que sabia lidar com as crianças, que já não eram propriamente crianças, mas sim uns matulões de 13 ou 14 anos. Tive-o durante três anos como professor de Português. Não era severo, com aquela finalidade absurda de difundir o respeito temeroso, mas também não era fraco, porque se havia agitação na aula, ele limitava-se a olhar à espera que se calassem, e calavam-se. Depois falava como uma pessoa, não como um manual, era muito humano e conseguia conhecer muito bem os seus alunos e falar com cada um deles para os sensibilizar? E era capaz disto - que mais nenhum professor fazia, e talvez hoje também não façam ?: mandava fazer uma redacção, de uma ou duas páginas, e depois, no caderno do aluno, enchia três páginas (numa letra muito bonita, direita, a verde) com comentários à redacção. Eram ensinamentos, conselhos, lê isto, lê aquilo?

Vai com frequência às escolas?
Sim. Essas idas às escolas são mais úteis a mim, porque não é no encontro com os escritores que os alunos podem adquirir um gosto pela leitura ou ficar sensibilizados?
Hoje competimos com coisas que não havia no nosso tempo: temos uma concorrência feroz com a televisão, os CD?s, as discotecas? No nosso tempo, ou tínhamos a sorte de ir ao cinema ? e eu tive essa sorte ?, ou líamos. Numa turma havia 5 ou 6 pessoas que liam, hoje encontramos uma. É muito difícil a literatura competir com todos esses factores, mas, apesar de tudo, considero que as formas de docência deviam ser diferentes. Onde é que se aprende o gosto pela leitura? Para mim, é na pré-primária.
Mas não vejo uma discussão séria sobre o ensino da língua?

Classificam-no como escritor do neorealismo tardio.
Faço parte daquela fase neo-realista dos anos sessenta, quando a temática tradicional, ruralista, começa a dar lugar aos temas urbanos. O meu primeiro livro já revela essa tendência, mas também com algumas preocupações de modificar o estilo, não já na linha de uma narrativa convencional do princípio, meio e fim, que, aliás, fora herdada do naturalismo. Quando este processo se acentua, diz-se que os escritores deixam de ser neo-realistas.

O campo literário português sofreu enormes mudanças.
Depois do 25 de Abril, tudo se desmorona. A unidade dos escritores desaparece, as opções políticas multiplicam-se, todos se afastam uns dos outros, começam a fazer política, e nos dois ou três primeiros anos ninguém faz nada. E há uma quebra fatal da solidariedade, que se dizia de classe. E ocorreu igualmente a perda das tertúlias, que eram fulcros de pensamento colectivo.
O último movimento é o neo-realista, depois desse não apareceu mais nada. Hoje não há escola, há escritores diferenciados, o que também não é original? Se considerarmos a Espanha, o neo-realismo socialista também foi o último movimento literário.
Os escritores desapareceram como força de intervenção na sociedade.
O que também se deve ao facto de os escritores sentirem que tinham perdido muito tempo com a militância política, o que os levou a recuperar o tempo perdido, escrevendo mais.

Há quem sustente que a crítica literária também desapareceu?
Se calhar a crítica literária que se faz é apenas para o autor, quando devia ser sobretudo para o leitor. E não me parece que a que se faz hoje em dia lhe seja muito útil. É muito erudita, muito fechada.

«Para compreender o Mundo, a literatura continua a ser muito mais eficaz» disse-o numa entrevista a um jornal diário.
Sem uma literatura, não há um povo culto. Podemos dizer hoje que temos uma literatura rica, porque se publicam muitas obras? Mas passa-se com essa abundância o mesmo que em toda a parte.
Hoje em dia, é a literatura, e não só a portuguesa, que discute o Mundo, que o analisa e teoriza sobre ele. Os políticos são incompetentes, impróprios para consumo intelectual. Os filósofos (sempre fomos muito escassos em filosofia) também não são de consumo fácil. Por isso penso que a literatura é o melhor (senão o único) veículo para compreender o Mundo.

E o cinema?
Não, o cinema é muito fotográfico, retrata naquele momento e já está. É como o jornal diário, dura 24 horas, e o telejornal dura meia hora e acabou. Um livro, até pelo simples facto de se não poder ler em meia hora ou até em 24 horas, permite uma assimilação que perdura, criando uma relação íntima com o leitor.

Como explica então essa sua ligação ao Festroia?
O Festival surgiu um pouco por acaso ? se não tivesse sido escritor talvez fosse realizador ?; a certa altura fui contactado para dar algumas sugestões sobre a possibilidade de se criar em Tróia um Centro Cultural, associado evidentemente ao relançamento turístico da Península. Puseram-me então um problema: «o que é que se poderia fazer que fosse um veículo de transmissão imediata do nome de Tróia para o estrangeiro?» Eu disse que era preciso copiar o exemplo de muitos países: um festival internacional de cinema. Para além de facilitar ligações muito estreitas com o estrangeiro, também era muito eficaz do ponto de vista mediático. E foi assim que nasceu o Festival, juntando o útil ao agradável.

Mas nos últimos anos o Festival passou a ser mais da cidade de Setúbal do que de Tróia.
Em Tróia gerou-se uma situação de crise profunda, e o Festival teria fatalmente um fim idêntico ao da Torralta. Aí funcionou uma teimosia que é muito habitual em mim? Já que investíramos vários anos a construir o projecto, valia a pena tentar salvá-lo. E a única maneira que tivemos de o fazer sobreviver foi passá-lo para Setúbal. O Festival é hoje uma manifestação importante, com a preocupação quase exclusiva de divulgar o cinema que nós não temos.

Luís Souta
Colaboração de Mónica Martins



  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 134
Ano 13, Maio 2004

Autoria:

Mário Ventura

Luís Souta
Instituto Politécnico de Setúbal
Mário Ventura

Luís Souta
Instituto Politécnico de Setúbal

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo