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A aventura de um tocador de tambor

Eu adorava o meu tambor. Trazia-o sus­penso por uma correia larga atravessada no peito. Era um grande tambor. Usava paus de carvalho para bater na sua pele amarelo-baça. Com o tempo, os paus foram ficando polidos dos meus dedos, o que atestava o meu zelo e diligência. Andava com o tambor pelas ruas, branco do pó ou preto da lama; o mundo, de um lado e do outro, era verde, dourado, castanho ou branco, conforme as estações. Onde quer que fosse, a paisagem estremecia ao som do rata-plã-plã, plã, pois as mãos não me pertenciam a mim mas ao tambor, e quando o tambor se calava sentia-me doente. Estava eu alegremente a tocar uma noite quando o General veio ter comigo. Vestia só parte do fardamento, o blusão desabotoado e as ce­roulas à vista. Saudou-me, gaguejou uns mur­múrios por momentos, fez o elogio do Estado e do Governo e por fim disse em tom casual: «E tu continuas a tocar tambor, não é assim?"       

«Sim, senhor», exclamei, tocando com força redobrada. «Pela glória do nosso país."

«Muito bem», concordou, embora a sua voz soasse algo triste. «E por quanto tempo vais continuar?»

«Enquanto as forças não me faltarem, se­nhor», retorqui alegremente.

«És um belo rapaz», disse, coçando a cabeça. «E as tuas forças são para durar?»

«Até ao último alento, senhor», respondi orgulhosamente.»

«Bem, bem...» O General parecia surpreen­dido. Durante um momento aparentou mergu­lhar nos seus pensamentos e depois mudou de assunto.

«É tarde», disse.

«É tarde para o inimigo, nunca para nós», gritei. «O futuro pertence-nos!»

«Muito bem, muito bem...», disse o Gene­ral, mas pareceu contrariado. «Quando disse que era tarde, queria dizer que a hora ia avançada.»

«A hora da batalha soou! Disparem os canhões, toquem os sinos!», gritei com o entu­siasmo de um verdadeiro tocador de tambor.

"Oh não, não, os sinos não», acrescentou rapidamente. «Quero dizer, que toquem os sinos, mas só de vez em quando.»

«Muito bem, camarada General», concor­dei apaixonadamente. «Não precisamos de sinos, se, temos os nossos tambores!» Para sublinhar a minha afirmação, rufei alto e bom som.

«Nunca ao contrário? Ahn?», perguntou o General. Soava inseguro dele próprio e ta­pava a boca com a mão.

«NUNCA, senhor», repliquei. «Pode con­fiar neste seu tambor, senhor. Nunca deixarei que ele se cale.» Estava exultante, tomado por uma onda de fervor.

"O nosso Exército pode orgulhar-se de ti», disse o General sem entusiasmo. Um frio nevoeiro tinha descido sobre nós e chuvis­cava. Tudo o que consegui ver através da neblina cinzenta foi o topo da tenda do Ge­neral.

«Sim, orgulhoso», continuou ele. «Nunca havemos de parar, mesmo que tenhamos de andar dia e noite, mesmo se... Sim, cada passo. . .»

«Cada passo será um infindável rufar de vitórias», atalhei, tocando o mais fortemente que me era possível.

«Bem, bem», murmurou o General. «Sim, é isso mesmo...», e encaminhou-se para a sua tenda. Fiquei só. A solidão estimulou a minha ânsia de auto-sacrifício e o meu sentido da responsabilidade como tocador de tambor. Foste-te embora, General, pensei, mas o teu fiel tambor está alerta. De sobrolho franzido, trabalhas nos planos e estratégias, pondo bandeirinhas no mapa para assinalar a estrada da nossa vitória conjunta. Ambos, tu e eu, conquistaremos o futuro e anunciarei a vitória por ti e por mim com um rufar de tambor.

Estava repleto de ternura para com o Gene­ral e com tal vontadede me dar à causa que, se fosse possível, teria tocado ainda mais alto. No fundo da noite, iluminado pela juventude do meu entusiasmo e aquecido pelo nosso grande ideal, devotava-me à minha honrosa tarefa. De tempos a tempos, nas pausas do bater do tambor, ouvia, vindo da tenda do General, o ruído das molas do colchão, como se alguém, impossibilitado de dormir, se re­virasse na cama. Por fim, cerca da meia-noite, uma figura branca recortou-se no nevoeiro, perto da tenda. Era o General em camisa de dormir. A sua voz era rouca.

«Quer dizer que estás disposto a continuar a tocar a noite toda, não é?", perguntou. Fiquei realmente comovido por ele ter vindo até mim no meio da noite. Um autêntico pai para os seus soldados!

«Sim, senhor. Nem o frio nem o sono me vencerão. Estou pronto a continuar tanto quanto as minhas forças o permitam, cum­prindo as exigências do dever e da causa pela qual lutamos. Assim manda a minha honra. E que Deus me ajude!»

Ao dizer estas palavras, não fui motivado pelo desejo de aparecer aos olhos do Gene­ral como um obstinado pelo dever ou pelo desejo de lhe agradar.

Não me estava a vangloriar para alcançar promoções ou recompensas. Nem por um mi­nuto me passou pela ideia que tal interpreta­ção pudesse ser atribuída à minha atitude. Sempre fui sincero, e franco e, com trinta diabos, deixem-me que lhes diga, um bom tambor.

O General rangeu os dentes. Pensei que tosse do frio. Então disse: «Bem, muito bem», e desandou.

Passados poucos minutos, fui preso. A pa­trulha designada para a tarefa cercou-me em silêncio. Tiraram-me o tambor, arrancaram-me os paus dos meus dedos frios e fatigados. O silêncio encheu o vale. Não podia falar com os camaradas que me cercavam apontan­do-me as espingardas, pois isso não era per­mitido pelos regulamentos. Levaram-me para tarado acampamento. No caminho, um deles segredou-me que tinha sido preso por ordem do General. A acusação era de traição. Traição!

O amanhecer rompia. Algumas nuvens cor­-de-rosa flutuavam no céu. Elas foram sauda­das por um saudável ressonar que ouvi quando passei pela tenda do General.

Mrozeck; O elefante


  
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Edição:

N.º 130
Ano 13, Janeiro 2004

Autoria:

Mrozeck
Escritor
Mrozeck
Escritor

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