Para Lucienne Summers
O LEITOR PODE PENSAR QUE NÃO EXISTE COMPARAÇÃO ENTRE UM GRUPO DE CRIANÇAS E UM DE IDOSOS. CONTUDO, O MEU TRABALHO DE CAMPO TEM-ME DEMONSTRADO QUE AS EMOÇÕES SÃO MUITO SEMELHANTES: O DESESPERO DOS DOIS EXTREMOS DO PROCESSO DA VIDA. SENDO O PRIMEIRO FACTO A TRATAR, A FORMA DE CANALIZAR ESSA EMOÇÃO QUER PARA IDOSO QUER PARA O FUTURO ADULTO.
A velhice e a doença que normalmente a acompanha, faz do adulto um sujeito de mimos, como se de um bebé se tratasse. Esse idoso que, um dia, não conseguirá falar ou movimentar o seu corpo. Os seus pares de geração ou de gerações próximas perdem a paciência devido à lentidão dos movimentos, das palavras que faltam, dos esquecimentos. E, como se de um bebé se tratasse, vão falando com palavras parvas, no intuito de ajudar. Uma senhora que lia e conduzia o seu carro, apesar dos seus 85 anos, sem óculos e sem problemas de orientação, até que um mês depois, vítima de um aneurisma, fica imobilizada, logo, lenta e envergonhada numa procura desesperada das memórias que o derrame cerebral tinha lavado, como um rio. Uma amiga próxima da sua geração, ao pretender estimular esse rio, nublou com adivinhas de nomes e sítios, essa memória perdida e, conjunturalmente, enervada ao perceber que não consegue agir, como esperado. E, na sua boa intenção, a amiga insiste: ?coitadinha, claro que sabes, vá lá, diz...?. Num acesso de fúria mal contida, intervenho e digo com arrogância: ?Não era melhor dar a pista com uma palavra para ela continuar a frase...? Frase a minha que não é ouvida porque os adultos sadios entendem que adulto maior e doente precisa de...compaixão, como refiro no texto, ?A criança velha?, publicado neste jornal. O meu apoio à criança velha mas consciente da sua situação, ajuda-a encontrar as palavras costumeiras, com calma, e diz: ?Bom, foi um prazer, vou andando?, e a conversa acaba. Mas, a senhora compassiva, porque é assim que tem sido ensinada, começa com festinhas na cabeça desse adulto maior, beijinhos nas bochechas e comentários para os outros adultos aí presentes, que referem a doença, como se esse adulto maior não estivesse a ouvir e entender. Ela fica furiosa, mas a sua cortesia e falta de meios de expressão, não lhe permitem ir mais longe e dar um ?murro? na mesa. Fugimos do mal entendido desejo de amar e de ser solidário, esse sentimento apreendido na catequese e praticado ao longo da vida. Esse adulto maior tem o desespero de não poder exprimir o que sabe pensar, especialmente essa dependência dos outros adultos, que apenas lhe faz mal e não permite avançar na sua recuperação ou reaprender a vida, de forma difícil e arriscada. Fiquei revoltado e sai sem cumprimentar ninguém, para resgatar a minha doente. Como a criança, que vive no desespero do mundo ser interpretado para ela, especialmente no caso das mães que pensam saber melhor os sentimentos dos seus descendentes. Não é em vão que François Dolto, no seu texto da Editora Seuil de 1981, páginas 263 e seguintes, diz que ?no jogo do desejo os dados estão viciados e as cartas marcadas?, visto o desejo ser o apelo à comunicação inter-humana. Comunicação que deveria começar por reconhecer que estamos perante um ser humano em formação, que precisa, não de uma dica para continuar a relação, mas sim de uma definição entregue com infinita paciência pelo ancestral responsável do menor. No entanto, tal como referido em um dos meus livros, a criança, tal como o adulto incapacitado, é também incapaz de referir o que lhe faz mal: existe a represália. Esteve ao pé de mim esse pequeno que me contara que mal se podia sentar, por causa de ter sido penetrado pelo irmão da mãe. Falar com a mãe? E a zanga que ela faria por um estrangeiro como eu, saber dessas intimidades familiares? Ou o tio, qual chuva de pontapés e murros, pelo pequeno andar a contar uma intimidade tão conveniente para ele, porque a criança não entendia essa delícia furtiva e conjuntural de um só: o tio? Pedofilia? Não será que vive entre nós fazem tempo? Ou apenas hoje, ao envolver altas hierarquias sociais, começa a ser crime e conversa social de escândalo, mas não de reparação? Quando se pretende recriar leis que há anos, deviam ter sido mudadas, porque o abuso aos velhos e às crianças, começou faz milhares de séculos, com a anuência que diz que se deve ?sofrer com paciência as adversidades do outro?? Não será a doença senil e a falta do entendimento infantil, uma adversidade para uma dita norma de interacção social? Não será que a população deve ser reenviada a conceitos verdadeiros de felicidade e respeito pelos que estão a crescer ou a crescer de novo, na continuidade de um saber esquecido devido à maldição dos seres humanos termos um corpo que não se respeita e fica parado? Então, devo dizer: ?homens de pouca fé, é preciso ler os textos escritos que orientam a desejada e necessária interacção social?? Catecismo, Bíblia, Lei, Direito, Medicina, Terapia e outras sabedorias hoje importantes para gerir um mundo entregue às nossas pobres economias, proibidas de lucrar, logo, necessitadas de viver de um salário. Raiva social que cai em cima dos mais indefesos: o adulto maior e a criança, como diz nos seus textos, debates e conversas, Ana Paula Vieira da Silva. Estou revoltado. Revoltado pela misericórdia e pelo tratamento à senilidade, revoltado contra o abuso emotivo das crianças e essa inacreditável vergonha dos pais ou adultos deles encarregues, que apenas vêem que a sua honra não deve ser manchada ? sem sentir a nódoa espalhada pela vida inteira da criança, e pelo curto futuro do adulto incapacitado. Um desespero, deles e meu, assediado pela mentira e traição. O meu texto é triste e pouco divertido? Mas, que divertimento podemos viver se os nossos próximos nos traem, ao provocarem, quer às crianças, quer aos adultos maiores, quer, mais uma vês, desespero. É com raiva e pesar que escrevo este texto. Que os pais, como gostava que fosse, o leiam, analisem e expliquem aos seus seres mais novos e proporcionem dicas aos mais velhos, para a vida continuar.
16 de Outubro de 2003. Aniversario da entronização de Karol Wojtila, que colaborou na queda do Muro de Berlim, metáfora de vida à qual aspiramos desde os textos de John Locke, Jean Jacques Roussau, François Marie Arouet de Voltaire, Denise Diderot, Abade Emmanuel de Sieyés, Thomas Jefferson, Gracchus Babeuf, Pierre Sylvaine Marèchal, Philippo Buonarroti, fundadores das Luzes e da Comuna de Paris ? entre outros, patriotas da Igualdade.
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