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Cinco perguntas a Licínio Lima

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  1. O processo de ?ordenamento da rede de ofertas educativas? contraria, de certa forma, os princípios da actual LBSE. Qual é a sua opinião?
    O processo de ?ordenamento da rede de ofertas educativas?, designadamente na sequência de um despacho do Secretário de Estado da Administração Educativa que estabelece que todas as escolas deverão ser agregadas através de uma lógica de verticalização (reunindo escolas de diferentes ciclos de escolaridade), parece contrariar e reduzir as possibilidades abertas pela Lei de Bases de 1986 e pelo regime de autonomia, administração e gestão das escolas em vigor.
    Este regime prevê a criação de agrupamentos de tipo vertical e horizontal, afirmando pretender afastar soluções uniformes de gestão e insistindo numa lógica de matriz. Privilegia a integração de jardins-de-infância e de escolas do 1º ciclo, assim procurando resolver o seu eventual isolamento e/ou a sua falta de dimensão em termos organizacionais, e defende que as estratégias de agrupamento das escolas devem resultar de dinâmicas locais, salvaguardando a identidade própria de cada escola.
    De resto, o processo de agrupamento de escolas, já consagrado na Lei de Bases de 1986, não só não é novo como, ao longo de mais de uma década, produziu tipos de agrupamentos diversos e com distintas designações (as escolas básicas integradas a partir de 1990, as áreas escolares a partir de 1991 e os agrupamentos de escolas desde 1997).

  2. Na sua opinião, a orientação politica decorrente deste processo ?põe em aberto a hipótese de controlo sobre as escolas?. Em que medida?
    A recente orientação política, embora invocando princípios importantes, como o da realização de um percurso sequencial e articulado dos alunos e o da superação da situação de isolamento de certas escolas, revela acima de tudo um enorme desprezo pelos processos e dinâmicas locais que foram construídos ao longo do tempo, pelas realizações alcançadas e, não menos relevante, pelos consideráveis esforços exigidos a professores, pais, autarcas e outros intervenientes. Os objectivos pedagógicos, tal como os propósitos de modernização da administração invocados, só dificilmente serão concretizados mantendo o velho estilo autoritário de uma administração que, ao mesmo tempo, se afirma pretender reformar e democratizar.
    Agrupar escolas isoladas pode ser uma boa medida, embora passível de ser alcançada de diferentes formas; agrupar todas as escolas, mesmo as não isoladas, é no mínimo discutível, até em termos da dimensão resultante; reorganizar os agrupamentos já formados e em normal funcionamento, forçando os horizontais ao desmantelamento para imediato re-agrupamento vertical, é insistir numa lógica de controlo centralizado e tecnocrático. As boas soluções não são necessariamente boas para todos e raramente são aquelas desenhadas a régua e esquadro nos gabinetes que pensam, à prova de qualquer intervenção autónoma dos actores periféricos.
    Mas é no domínio da reforma da administração escolar que aquela medida pode revelar todo o seu alcance político. O agrupamento de escolas com vista à garantia de formas mais ampliadas de autonomia parece posto de parte e contrariado pelo próprio processo adoptado pela administração. Fica em aberto a hipótese da reorganização administrativa para o reforço do controlo sobre as escolas.

  3. De que forma se manifesta esse controlo?
    Observe-se como a centralidade da escola nos discursos políticos e normativos evidencia uma perda de protagonismo face aos conceitos de rede de estabelecimentos, rede de ofertas, agrupamentos, unidades de gestão, etc. A unidade de gestão estratégica passará a ser o agrupamento de escolas; uma nova forma de organização que romperá com a retórica da centralidade da escola, atribuindo a esta um estatuto ainda mais periférico, já potencialmente inscrito no novo conceito de ?subunidade de gestão?.
    A sair confirmada, esta hipótese revelar-se-ia como uma espécie de ?desescolarização? da administração escolar ao retirar a cada organização-escola concreta os seus principais órgãos de representação e gestão, deslocalizando-os para novas ?unidades de gestão? situadas acima e para além das suas fronteiras físicas e simbólicas; tal como já há muito sucedeu com o governo das escolas. Os agrupamentos de escolas poderão vir a representar um novo escalão da administração desconcentrada a partir da escola-sede, embora acima das escolas-outras e entre estas e os ?coordenadores educativos?, e respectivas direcções regionais. Os conselhos municipais de educação completarão o esquema, ou seja, a possível tenaz de maior controlo sobre cada escola, apagada e sitiada por sucessivos níveis administrativos, cada vez mais longe do centro e mais distante de se poder assumir como central.

  4. A lei de bases actualmente em discussão no Parlamento parece, também ela, servir como instrumento político para a prossecução destas medidas. Pode comentar?
    O projecto governamental de Lei de Bases da Educação resulta já da assunção de um vasto conjunto de orientações políticas que vêm sendo levadas à prática através de diversa legislação ordinária. Isto não retirará impacto jurídico-formal à futura Lei mas, de facto, pode vir a acontecer que uma boa parte dos princípios nela contidos esteja já em vias de implementação. Tal significaria que a Lei de Bases representaria sobretudo um repositório de orientações políticas já em prática através de uma normativização a priori por parte do actual governo; ou seja, a concretização de um possível projecto de governamentalização da Lei de Bases da Educação.

  5. Que consequências poderão advir deste processo para o sistema educativo português?
    Não é possível, num curto espaço, inventariar aqui as possíveis consequências. Mas no que concerne especificamente o actual processo de agrupamento de escolas, é já visível a redução de certas margens de autonomia por parte dos estabelecimentos de educação e ensino agrupados e, nomeadamente, dos respectivos profissionais da educação. Existe uma espécie de deslocalização do exercício quotidiano da gestão escolar e da tomada de decisões pedagógicas, agora transferidos do interior de cada ?subunidade de gestão? para o agrupamento, sem garantir o reforço da autonomia e nem sequer mais condições e mais recursos para a constituição de uma verdadeira rede integrada de estabelecimentos. O que está em causa é uma nova forma de desconexão entre a acção educativa concreta, levada a cabo em cada contexto escolar concreto, e a direcção e gestão escolares respectivas. Muito previsivelmente, testemunharemos novos processos de alienação do trabalho escolar.

* Professor e investigador da Universidade do Minho


  
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Edição:

N.º 127
Ano 12, Outubro 2003

Autoria:

Licínio C. Lima
Instituto de Educação e Psicologia, Univ. do Minho
Redacção

Licínio C. Lima
Instituto de Educação e Psicologia, Univ. do Minho
Redacção

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