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O Veterano

Ao meu lado, no mesmo piso, vivia um homem velho mas vigoroso. Quando passava pela sua porta, ouvia-o cantar com frequência «Quando o toque da alvorada nos chama aos Muros, Destino do Granadeiro, Cá estamos raparigas». Costumava encontrar-me com ele na leitaria onde ambos comprávamos pão, manteiga, leite e picles de pepino. Devia ter mais de setenta anos, mas caminhava com as costas bem direitas.
Vim a conhecê-lo no Outono passado. Uma noite, quando saía de minha casa e fechava a porta, ele veio ao patamar e con­vidou-me a entrar para dois dedos de con­versa.
Encontrei-me num quarto frio e quase va­zio ? uma mesa, uma cadeira, uma cama de ferro e um enorme armário de carvalho escuro entalhado. Lá fora o vento batia nas vidraças lúgrubremente.
Por momentos, quedámo-nos silenciosos, olhando um para o outro. Depois, fixou-me e disse com compassada ênfase:
     «ERA EU que levava o estandarte do quinto regimento.»
     «Ah! Sim?», disse eu.
«Sim, do 5.° Regimento», repetiu. Continuámos a olhar-nos até que, percebendo que as suas palavras não tinham causado qualquer efeito em mim, baixou os olhos. Eu não sabia nada do 5.° Regimento.
«Hoje é o aniversário do Regimento. Era o mais famoso do país. Mas o senhor é novo             demais para se poder lembrar.»
Abri as mãos, num gesto de impotência., «Combateu bem?», perguntei para lhe ser agradável.
«Que marcha! Oh, como marchámos bem! Devia ver-nos. Que lindo! Mas hoje... verifiquei. Só resto eu. Sou o último soldado do 5.° Regimento.»
«E depois?»
«Hoje é o dia do aniversário. Neste dia havia sempre uma grande marcha, e os jornais faziam uma grande reportagem. O nosso Regimento escoltava o Comandante-em-Chefe. Eu era profissional. Ninguém conseguia gri­tar mais alto que eu: Hip, hip, hurrah e três vivas.»
Perfilou-se, colocando as mãos nas costu­ras das calças que lhe ficavam demasiado grandes, e olhou pela janela, com a expressão de um falcão poeirento embalsamado.
«Desculpe», disse eu, «três vivas a quem?»
«Hip, hip, hurrah!»
A bátega da chuva na janela parecia o eco dos vivas.
Dirigiu-se ao armário. As portas, que tinham esculpidos cachos de uvas, rangeram alto. Olhei por cima do ombro dele. O único objecto dentro do armário era um pequeno pau de madeira envolto em lona. O homem bateu os tacões, agarrou na haste e tirou-o.
A bandeira do regimento. À luz fraca da lâmpada pendurada do tecto sujo, desdobrou um pano bolorento. Um leão dourado segu­rava o algarismo cinco. O roxo escuro do tecido parecia alegre, em contraste com as paredes nuas e esboroadas do quarto.
Encostou o pendão contra o armário e pôs as mãos como para rezar.
«Peço-lhe», disse, «não me diga que não. Não é longe... Por favor.» Não pude recusar. Embrulhou a bandeira no jornal e levou-a para a rua. Segui-o.
O último eléctrico levou-nos à Praça Cen­tral. A chuva continuava a cair em bátegas. Descemos. À nossa frente estendia-se uma vasta extensão de asfalto negro. A luz dos muitos candeeiros agitados pelo vento espraia­va-se na superfície brilhante. Costumava ser o lugar de encontro de todas as paradas, pro­cissões e demonstrações. O velho continuava a explicar.
«...0 nosso regimento era especial, só para acontecimentos nacionais... tínhamos a maior banda do país. Que banda!»
Empurrados para trás e para a frente pelas bátegas de água, dirigimo-nos ao centro da Praça. Não havia nenhuma plataforma.
« É capaz de ficar aí?», apontou para o cimo de uma forma indistinta, perto de nós. Era um caixote de lixo. Subi, abotoando o casaco para melhor vencer o vento. Num plano inferior a mim, via a silhueta do porta­-bandeira com o pano ainda enrolado no pau, qual lança.
"Comecemos», disse com a voz tremendo de emoção. «Graças a si, uma vez mais po­derei passar a marchar. Talvez seja a minha última marcha.»
     «Ora essa. Não há razão para falar assim» disse eu delicadamente. O vento era terrível.
     Concentrou-se e deu-me uma ordem seca: «Ponham-se em formatura.»
     Afastou-se.
Senti-me ridículo, em equilíbrio instável no cimo de um caixote do lixo sózinho no meio e uma praça vazia.
De repente, o vento trouxe pela minha esquerda o sussurro de uma voz distante, «Esquerda, direita, esquerda, direita...»
O porta-bandeira surgiu sob a luz incerta dos candeeiros da rua. Esvoaçando ao vento sobre a sua cabeça, o pendão hasteado era sustido por mãos inseguras.
     Aproximava-se. Em passo de parada. Levantava os pés desajeitados de maneira burlesca, assentando-os depois no passeio com um baque suavíssimo.
     «Hip, hip, hurrah!»
     O vento levava a voz do velho, espalhan­do-a pelos cantos da enorme praça.
     «Hip, hip, hurrah!»
     Já a poucos passos de mim, levantou a cabeça e gritou com voz de falsete:
     «Diiiireita!»
Passou por mim três vezes, baixando sem­pre o estandarte com o leão dourado segurando o número cinco.
Agarrei o casaco com uma mão. A outra levei-a vagarosamente à cabeça. Fiz continência.

Mrozeck
O Elefante, editorial estampa.


  
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Edição:

N.º 122
Ano 12, Abril 2003

Autoria:

Mrozeck
Escritor
Mrozeck
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