Tirando partido dos efeitos próprios da ressonância da sentença bíblica, J.-L.
DEROUET disse algures que "a escola não é deste mundo". Queria ele dizer que,
por força dos conteúdos de que se ocupa, das práticas que desenvolve, dos
rituais que consagra, dos valores que inculca e dos sentidos que supõe, a
escola representa um mundo inverso daquele a que pertence a grande parte da
população a que é suposto dirigir-se. Se nos detivermos um tanto na análise da
expressão, talvez acabemos por encontrar algumas das razões que suportam a
"verdade" do fenómeno a que a expressão se reporta. É o que vamos ensaiar.
Entre essas razões, a mais determinante parece ser a da própria universalização
da escola. O que na verdade não deixa de ser paradoxal. Como é que a escola, ao
mesmo tempo que se oferece a todos, se torna cada vez mais distante dos seus
destinatários? Este paradoxo acentua-se um pouco mais se admitirmos que a
universalização da escola é imposta em nome da sua indispensabilidade. Porque é
por força da indispensabilidade da escola neste mundo hipercomplexo que a
escola se justifica: primeiro, em nome de valores morais, como o da justiça e o
da igualdade, já que a administração do mundo contemporâneo não seria possível
sem ela pelo importante papel que ela desempenha na construção, atribuição e
reconhecimento do mérito individual, na base do qual se organiza toda a
legitimidade do mundo social actual; segundo, em nome dos valores científicos,
técnicos e organizacionais sobre os quais repousa a própria viabilidade do
modelo económico e social de que depende a nossa civilização ocidental.
A intensificação da escolaridade da população - que se traduz no alargamento da
base de recrutamento da escola, mas também no aprofundamento do grau de
controlo de quem a deve frequentar, através, designadamente, da adopção de
mecanismos de políticas sociais de inclusão - é a concretização formal do
princípio da indispensabilidade.
A realização prática desse princípio introduziu a máxima heterogeneidade social
e cultural no mundo escolar e os seus efeitos sobre a "credibilidade" da escola
têm sido devastadores, sobretudo se considerarmos a experiências dos últimos
anos, correspondentes ao alargamento da escolaridade obrigatória para os nove
anos. Os cada vez mais ácidos e intolerantes juízos que responsáveis políticos,
personalidades académicas, animadores da opinião pública e outros agentes
sociais lançam sobre o funcionamento das escolas, bem como as medidas de
"saneamento administrativo" previstas, que passam pelos rankings de alto
a baixo do país e pela avaliação cancelatória aplicável em tudo quanto é final
de ciclo escolar, atestam eloquentemente o modo como "a escola não pode ser
deste mundo"; ou o modo como "este mundo, este novo mundo que agora chega à
escola" deve ser tratado.
Há uma certa coerência macabra neste discurso exorcista, devemos reconhecê-lo:
a universalização social da escola, ao trazer para o quotidiano dos
estabelecimentos escolares a "diversidade, o ruído, a indisciplina" em
contraste gritante com aquilo que é a sua vocação primeira, só pode revelar a
necessidade de mais disciplina, mais rigor e mais unidade nas suas formas de
actuação; ou, para o dizer mais rapidamente, a exigência de uma intensificação
sempre crescente da escolarização parece ser a única resposta à crescente
conflitualidade social que, agora, também vai à escola.
É a partir daqui que se reconhece existir uma convergência "cínica" e
contraditória entre os processos que geram a indisciplina exterior do mundo
social, dentro do qual se criam os novos públicos escolares, por um lado, e,
por outro, as exigências de controle, rigor e purificação no interior das
escolas para que apontam, dramaticamente, os novos discursos e os novos apelos
de regulação. E este é um novo desafio que se põe aos profissionais da escola
que têm claramente que optar entre a "escola que não é deste mundo " e "o mundo
da vida", desafio que é tanto mais pungente quanto maior é o risco do vazio
social da escola, espaço que vem sendo ocupado pela competição, pelo conflito
de culturas e pela estranheza mútua, designadamente entre professores e alunos.
Se fosse necessário dar a medida do desafio que está em causa, talvez
pudéssemos deixar aqui aquele desabafo dum azedume sem fim, saído da boca de
alguém quando se referia às profundas transformações sofridas nos últimos anos
no interior da sua escola: "desde que vieram para aqui "estes", foram-se os
"nossos" embora e agora já ninguém tem mão neles".
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