Página  >  Edições  >  N.º 114  >  "A Escola não é deste mundo"

"A Escola não é deste mundo"

Tirando partido dos efeitos próprios da ressonância da sentença bíblica, J.-L. DEROUET disse algures que "a escola não é deste mundo". Queria ele dizer que, por força dos conteúdos de que se ocupa, das práticas que desenvolve, dos rituais que consagra, dos valores que inculca e dos sentidos que supõe, a escola representa um mundo inverso daquele a que pertence a grande parte da população a que é suposto dirigir-se. Se nos detivermos um tanto na análise da expressão, talvez acabemos por encontrar algumas das razões que suportam a "verdade" do fenómeno a que a expressão se reporta. É o que vamos ensaiar. Entre essas razões, a mais determinante parece ser a da própria universalização da escola. O que na verdade não deixa de ser paradoxal. Como é que a escola, ao mesmo tempo que se oferece a todos, se torna cada vez mais distante dos seus destinatários? Este paradoxo acentua-se um pouco mais se admitirmos que a universalização da escola é imposta em nome da sua indispensabilidade. Porque é por força da indispensabilidade da escola neste mundo hipercomplexo que a escola se justifica: primeiro, em nome de valores morais, como o da justiça e o da igualdade, já que a administração do mundo contemporâneo não seria possível sem ela pelo importante papel que ela desempenha na construção, atribuição e reconhecimento do mérito individual, na base do qual se organiza toda a legitimidade do mundo social actual; segundo, em nome dos valores científicos, técnicos e organizacionais sobre os quais repousa a própria viabilidade do modelo económico e social de que depende a nossa civilização ocidental.
A intensificação da escolaridade da população - que se traduz no alargamento da base de recrutamento da escola, mas também no aprofundamento do grau de controlo de quem a deve frequentar, através, designadamente, da adopção de mecanismos de políticas sociais de inclusão - é a concretização formal do princípio da indispensabilidade.
A realização prática desse princípio introduziu a máxima heterogeneidade social e cultural no mundo escolar e os seus efeitos sobre a "credibilidade" da escola têm sido devastadores, sobretudo se considerarmos a experiências dos últimos anos, correspondentes ao alargamento da escolaridade obrigatória para os nove anos. Os cada vez mais ácidos e intolerantes juízos que responsáveis políticos, personalidades académicas, animadores da opinião pública e outros agentes sociais lançam sobre o funcionamento das escolas, bem como as medidas de "saneamento administrativo" previstas, que passam pelos rankings de alto a baixo do país e pela avaliação cancelatória aplicável em tudo quanto é final de ciclo escolar, atestam eloquentemente o modo como "a escola não pode ser deste mundo"; ou o modo como "este mundo, este novo mundo que agora chega à escola" deve ser tratado.
Há uma certa coerência macabra neste discurso exorcista, devemos reconhecê-lo: a universalização social da escola, ao trazer para o quotidiano dos estabelecimentos escolares a "diversidade, o ruído, a indisciplina" em contraste gritante com aquilo que é a sua vocação primeira, só pode revelar a necessidade de mais disciplina, mais rigor e mais unidade nas suas formas de actuação; ou, para o dizer mais rapidamente, a exigência de uma intensificação sempre crescente da escolarização parece ser a única resposta à crescente conflitualidade social que, agora, também vai à escola.
É a partir daqui que se reconhece existir uma convergência "cínica" e contraditória entre os processos que geram a indisciplina exterior do mundo social, dentro do qual se criam os novos públicos escolares, por um lado, e, por outro, as exigências de controle, rigor e purificação no interior das escolas para que apontam, dramaticamente, os novos discursos e os novos apelos de regulação. E este é um novo desafio que se põe aos profissionais da escola que têm claramente que optar entre a "escola que não é deste mundo " e "o mundo da vida", desafio que é tanto mais pungente quanto maior é o risco do vazio social da escola, espaço que vem sendo ocupado pela competição, pelo conflito de culturas e pela estranheza mútua, designadamente entre professores e alunos. Se fosse necessário dar a medida do desafio que está em causa, talvez pudéssemos deixar aqui aquele desabafo dum azedume sem fim, saído da boca de alguém quando se referia às profundas transformações sofridas nos últimos anos no interior da sua escola: "desde que vieram para aqui "estes", foram-se os "nossos" embora e agora já ninguém tem mão neles".


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 114
Ano 11, Julho 2002

Autoria:

Manuel Matos
FPCE, Univ. do Porto
Manuel Matos
FPCE, Univ. do Porto

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo