Nasceu em Lisboa, em 25 de Setembro de 1944 e por aqui tem
residido, estudado (licenciou-se em Direito) e trabalhado (advocacia e, mais
recentemente, aulas de "escrita de argumento" na Escola Superior de Teatro e
Cinema). A sua escrita, notam alguns críticos, reflecte esse "pendor urbano
e sobretudo lisboeta", se bem que João Gaspar Simões, a propósito do livro de
estreia Contos da Sétima Esfera (l981), tenha dito que Mário de Carvalho
era um "contista que bem poderia ter colaborado no 'Talmude', na 'Lenda Áurea'
ou nas 'Mil e uma Noites'".
Mário de Carvalho é um homem de partido e de causas (após a prisão, teve que
se exilar em França e na Suécia para evitar o presídio militar de Penamacor,
por questionar politicamente a guerra colonial; Os Alferes, de 1989,
falam-nos dessa geração estudantil contestatária). No entanto, no campo literário,
tem-se mantido fora de qualquer escola.
O seu trabalho desdobra-se, com sucesso, pelo romance, conto, tradução, teatro
e guionismo para cinema. Recebeu os prémios Cidade de Lisboa, Dom Dinis, Fernando
Namora, Grandes Prémios da APE do Conto, do Romance e Novela, e do Teatro, e
o prémio Pégaso de Literatura.
Estamos perante um exímio escritor, na arte ímpar de contar histórias com humor,
sarcasmo e lucidez.
Vinte anos de carreira literária, 18 livros publicados.
Uma actividade gratificante. Registo, pelo menos, sete prémios, sendo três grandes
prémios (os da APE) em géneros distintos - conto, romance e teatro. Só falta
a poesia...
Um autor, de que me não recordo agora, dizia não fazer poesia porque "não
gostava de falar de si". Eu não me atrevo a escrever poesia; é uma coisa tão
elevada e distante. A minha área é a da narrativa e das histórias.
Recordo aqui uma apreciação, já antiga, do Urbano Tavares
Rodrigues que o considerava como "insólito e cativante contador de histórias
que alia ao mais solto humor uma riquíssima mas policiada imaginação". Revê-se
nestas palavras?
Essas observações do Urbano Tavares Rodrigues são muito próprias duma generosidade
e amabilidade, amplamente conhecidas. É muito curioso, já nessa altura ele ter
notado o "policiamento" da escrita. Mas à medida que os anos decorrem eu sinto-me
cada vez mais vigiado naquilo que escrevo. É como se, de facto, houvesse vários
"polícias" instalados à minha volta. Um que se preocupa em chamar à atenção
para a verosimilhança das situações, outro para as banalidade, os lugares comuns
e o "dejá vu", outro para a correcção da prosa, que manda consultar o dicionário,
outro para a eufonia, a prosódia da língua portuguesa, que manda sentir-lhe
o ritmo, etc.
Policiamentos" mais relacionadas com a forma e o rigor do
que com a imaginação?
Sinto que quando comecei a escrever era mais espontâneo e até mais atrevido.
Com a idade e a experiência da escrita, essa alegria de escrever foi-se esbatendo.
A escrita tornou-se mais contida, mais profissional
É-se mais ousado nos primeiros trabalhos?
Sim, mais ousado, mais descarado, mais despachado. E também mais autocomplacente.
Depois passamos a ser muito exigentes connosco próprios.
Em que medida é que ser advogado lhe facilita ou dificulta
a produção da escrita ficcional?
Há uma associação de escritores juristas, de que faço parte com muita honra,
que edita a revista Foro das Letras. Há vários anos que deixei de exercer
advocacia; é uma profissão que tem uma escrita especial, uma escrita teleológica,
destinada a um certo objectivo; ali trata-se de separar os factos, separar o
Direito e saber sempre em que terreno é que estamos. A prática da advocacia
(com uma escrita técnica, essa sim policiadíssima), que em dado momento foi
bastante intensa, acabou por me facilitar muito o separar de águas [na escrita
ficcional]. Costuma-se dizer que os escritores são um bocado esquizofrénicos,
repartem-se por várias personagens, vivem várias situações, às vezes, utilizam
vários estilos e várias linguagens. Eu penso que consigo separar muito bem a
realidade da ficção, não misturo as duas coisas. Faço questão de saber sempre
em que terreno me encontro.
Algumas das suas obras recuam muito no tempo histórico
(Quatrocentos Mil Sestércios, Um deus passeando pela brisa da tarde,
A Paixão do Conde de Fróis, entre outras). É uma forma de fugir à realidade
dos dias de hoje?
Quatro mil, cinco mil anos de história (que se conta a partir dos primeiros
registos escritos) é um período muito curto na existência da humanidade. O homem
contemporâneo, o medieval ou o romano são o mesmo homem. Ainda não se inventou
aquilo que se chamava o "homem novo" (ou a invenção deu mau resultado). As pessoas
ficam muito admiradas quando eu desconfio das utopias. Mas nas coisas do mundo
real sou muito prático e muito concreto. Tal como na política. No mundo da ficção,
aí sim, cabem todas as utopias e todos os delírios.
Na sua escrita ficcional, a preocupação de enorme rigor
na reconstrução de cenários do passado, leva-o, creio, à consulta de muita documentação
de referência, o que implica investigações minuciosas (históricas, terminológicas,
...).
Isso tem a ver com a minha formação de base, clássica, e com o facto de
eu ser extremamente curioso; uma altura interessei-me por marinharia (eu que
enjoo quando atravesso o Tejo!) e deu O Livro Grande de Tebas, Navio e Mariana
(1982). Tenho tido particular interesse pela antiguidade clássica - Roma (Quatrocentos
Mil Sestércios, 1991, Um deus passeando pela brisa da tarde, 1994).
Assim como pela Idade Média, O Conde Jano, ou pelo século XVIII (A
Paixão do Conde de Fróis, 1988).
Queria agora que me falasse desse exercício de escrita,
em parceria, com a Clara Pinto Correia. E se tivesse a bondade de me dizer
porquê (1986) é uma obra curiosa em 30 capítulos, escritos alternadamente
pelos "contra-autores", com base num "pacto" de 10 pontos anunciado na abertura
do livro. Conte-me lá essa experiência a duas mãos.
É o que está à vista. Eu e a Clara não nos encontrávamos; enviávamos, por correio,
os textos para o jornal e para o outro. Depois tínhamos que dar seguimento,
em cada capítulo, à situação que o outro tinha colocado as personagens. Também
é verdade que o imaginário da Clara e o meu são completamente diferentes.
Dá a ideia que o texto que vos deu algum prazer?
Deu. Foi uma proposta lúdica, e passado este tempo todo ainda tem alguma
graça. O livro tem uma particularidade curiosa: antecede a Perestroika e há
ali sinais de que se vai passar alguma coisa. Pressentia-se que algo estava
a mudar.
Qual é a sua opinião sobre a moda dos workshops
de "escrita criativa" por onde passa muito a ideia da construção do texto interactivo?
É como o "Melhoral", não faz bem nem faz mal...Tudo o que sirva para interessar
as pessoas pela leitura, seja benvindo.
Essas interactividades não fazem parte do meu campo de interesses imediatos.
Embora tenha já trabalhado com miúdos, a partir do Instituto de Tecnologia Educativa.
Fizemos histórias em conjunto com várias escolas, num processo algo parecido
com o que hoje se designa por chats.
Tem escrito bastante para teatro e muitos desses textos
têm sido representados (O Bando, Teatro Aberto, Malaposta, Aloés...). Neste
sentido, é um trabalho eficaz e gratificante. Sei que acompanha, muito de perto,
o "pôr a peça em cena".
Faço "trabalho de mesa". Troco ideias com o encenador e os actores.
Acaba portanto por rescrever o texto original?
Sim, são muito úteis essas conversas com o encenador e o grupo de actores.
Mas já não gosto de ouvir o meu texto dito no palco. Incomoda "ouvir-me". Detesto
ensaios e rodagens. Tenho uma sensação de desconforto.
Bem contrária é a sua experiência como guionista de filmes.
Alguns escrevem-se e não dão em nada, ou seja, o filme não se faz ou nunca chega
a ser exibido.
Costuma-se dizer que os romances não são acabados, são abandonados. Podia-se
dizer isto com mais propriedade sobre os guiões de cinema. Escrevem-se, dão
trabalho e, depois, por qualquer razão, quase sempre alheia à qualidade da escrita,
são deixados de lado.
Enquanto a peça de teatro suporta a leitura autónoma, já ninguém tem a pachorra
de ler um guião de um filme. Se não se faz, vai para o lixo...
Há em vários livros seus, referências que denotam uma posição
crítica em relação ao funcionamento do nosso sistema de ensino, à forma como
os professores operam e, em particular, à forma como mal tratam a língua.
O ensino está massificado e generalizado, o que, em si, é um bem. Está
a reproduzir cada vez mais a leviandade, a futilidade, a falta de rigor e a
ignorância que grassam no conjunto da sociedade e isso é um mal.
É muito preocupante a iliteracia, a ignorância da língua e da História. Mas
isto não se resolve com a "menina de cinco olhos". Quanto ao uso e abuso do
Inglês, dá a impressão que se está a instalar, entre nós, uma espécie de mentalidade
de colonizado. Sem cairmos na histeria patrioteira há que procurar inverter
este rumo.
Como vê a desvalorização curricular da Literatura na aprendizagem
do Português?
Vou-lhe contar uma história muito engraçada que se passou com o escritor
Augusto Abelaira. Ele estava preocupado porque não sabia como resolver certa
dificuldade gramatical. Então foi consultar uma gramática (creio que a do Prof.
Lindley Cintra) e encontrou esse caso documentado com uma citação dele próprio,
Augusto Abelaira. Quem é que mexe e remexe na língua escrita e a vai transformando?
Os escritores, que alguns patetas tecnocratas (atenção que o analfabetismo vem-se
instalando em escalões muito altos) querem banir do ensino.
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