Importa falar de Descartes, reacender cinzas tão apagadas? Perguntará o leitor
contaminado pelo vírus do racionalismo utilitário, ou até frenético, apressado,
como convém a um tempo onde perdura, de facto, a ditadura do efémero. Mas se
recuarmos até ao determinismo mecanicista (presente em muitas metodologias do
treino desportivo), que dominou toda a ciência moderna; se remexermos na ideologia
do progresso técnico-industrial, que faz da natureza (e do trabalhador) um objecto
de persistente exploração; se apelarmos ao radical onde assenta a sociedade
de mercado (que já contaminou o próprio desporto de alta competição); se buscarmos
as causas porque o eu penso e o eu sou se identificam, no capitalismo, e a razão
se reduziu à sua função dianoética, operativa e instrumental; se viajarmos pelo
problema que é a mente descorporalizada - em todo este cenário, Descartes avulta
como o seu filósofo mais representativo.
Descartes é, sem dúvida, o representante de uma certa ordem do mundo e do saber
(porque não chamar-lhe burguesa?) onde tudo se pretendia estático e intemporal,
de acordo com os desígnios do capitalismo amanhecente. Procurando uma ciência
universal e uma linguagem unificadora dos saberes (como estamos longe do conflito
das interpretações de Paul Ricoeur), num mundo essencialmente matemático; fundamentando
a economia de mercado, ao fazer da razão uma razão calculadora; criando o moderno
dualismo antropológico de onde nasce a educação física, que não deveria confundir-se
com a educação intelectual - não se pode esconder a presença de Descartes e
de Locke e dos iluministas, na ciência e na filosofia e até nas palavras e nos
gestos de todo o desporto moderno.
Keith Davlin, no seu livro "Goodbye Descartes - the end of logic and the search
of new cosmology", com tradução em língua portuguesa, de 1999, observa: "No
caso da investigação sobre a racionalidade humana, a visão dualista cartesiana
está de tal modo enraizada na psique do homem ocidental do século XX, que qualquer
teoria que desafie essa visão está condenada a passar um mau bocado" (p.336).
Por isso, é tão difícil explicar ao Ministério da Educação porque a educação
física decorre da separação alma-corpo e esta, por seu turno, do dualismo social
que a burguesia criou. Porque o ser humano é corpo-mente-natureza-sociedade
e desejo e sonho, num permanente anseio de transcendência; porque a uma revisão
desapaixonada a natureza não é um relógio, mas um caos imprevisível; porque
as ciências romperam hoje com o passado, revelando os segredos do átomo, desvendando
a molécula da vida e criando o computador electrpónico; porque a educação motora,
ou seja, a educação de pessoas em movimento intencional, deverá confundir-se
com um alegre inconformismo, diante de qualquer tipo de injustiça social - a
motricidade humana, ou melhor, a ciência da motricidade humana, não só deverá
substituir a educação física, como deverá apontar a uma sociedade mais fraterna
e mais justa. E porquê? Porque a motricidade humana, isto é, o corpo em acto,
defende o termo de todos os dualismos, principalmente os políticos. Para nós,
a competição não passa de um convivente cotejo entre opiniões discordes, padrões
em controvérsia, amigos que fraternamente se encontram.
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