É evidente que a Educação Física não existe, cientificamente
falando. Por esta razão primeira: não há educação de físicos, mas de
pessoas em movimento intencional. Logo, só há Educação Física por força
de um corporativismo teimoso e de uma ignorância que se apossou do próprio Ministério
da tutela. O horizonte de um ajuizamento aberto à complexidade não tolera a
educação Física por que esta é um produto do racionalismo. E o que é o ser humano
senão uma complexidade, donde ressaltam o corpo, a mente, a natureza, a sociedade?
Foi no século XVIII que surgiu o termo "educação física". Na história da filosofia,
o primeiro filósofo a utilizá-la foi John Locke, no livro "Pensamentos sobre
a educação", para vincar que, sem um físico alimentado e cuidado, não há vida
intelectual em serena irradiação.
Mas também John Locke era um racionalista, ou melhor: um racionalista-empirista.
Nele, como em Descartes, o corpo vivo é simples máquina "oú toutes les fonctions
résultent de la seule disposition des organes, ni plus ni moins que les mouvements
d'un horloge" (L'Homme, V.C.IV, p. 428). Para um e para outro, a alma
não deriva da matéria. Ela está de facto alojada no corpo, mas "como um piloto
no seu navio". Daí, a superioridade da mente em relação ao físico. No entanto,
a Educação Física representa uma ruptura, no cotejo com a ginástica dos gregos
e do renascimento. Não deverá esquecer-se que ainda em 1567 Jerónimo Mercurialis
publicava o livro De Arte Gymnastica, fiel aos ensinamentos da ginástica
de Hipócrates, Galeno e do médico (e filósofo) árabe Avicena.
O iluminismo (todo o século XVIII europeu o foi) era declaradamente
racionalista. E é em pleno iluminismo que despontam as grandes figuras da educação
física: Jahn, Ling e Amoros. Os rapazes que a cultivassem deveriam apresentar-se
possantes, de tórax e braços musculosos, que o esforço entumecia e avermelhava.
As qualidades físicas, porém, não passavam de instrumento ao serviço dos imperativos
categóricos da razão. E o dualismo antropológico tornava-se evidente, aliás
como reflexo de uma sociedade dualista também (a sociedade burguesa, ainda amanhecente).
A imponência e o aparato do físico transformavam-se num exterior sem interior,
pois que a dignidade do espírito não lhe dizia respeito. A divisão da educação,
em dois grandes campos - a educação intelectual e a educação física -, martelava-nos,
ora com tacteante moleza, ora com percutido furor, o dogma da separação corpo-alma.
O espírito não reproduz a informação percepcionada do exterior, mas transmite-a
de acordo com os seus padrões de racionalidade. Assim se pensava...
O estudo sério dos sistemas complexos representa uma terceira
revolução da física, após a primeira, com Galileu e Newton, e a segunda, com
a teoria da relatividade e a mecânica quântica. Oxalá os educadores passem a
ter em conta, o mais depressa possível, esta revolução e vejam, como nitidez,
o que há de reducionista e caquético (embora respeitável, pela ética de muitos
dos seus intérpretes), na educação física. Aliás, na escola nem sequer há educação
física, mas sim educação desportiva, pois sem o concurso de uma bola a aula
de educação física praticamente desaparece. A área do conhecimento, que eu denomino
motricidade humana, tem, na sua história, três grandes momentos: a ginástica
(desde os gregos até ao século XVIII), a educação física (até ao século XX)
e o desporto. Que o mesmo é dizer: findou a educação física, na mesma altura
em que nasceu a educação desportiva. Se 90 por cento das aulas de educação física
se resumem a prática desportiva, porque não havemos de ser rigorosos na terminologia
apresentada?
Estou entre os que aplaudem todos os cientistas sociais, licenciados
em educação física, e que levantaram, ao ritmo da própria cultura hodierna,
um corte epistemológico em relação ao passado da sua profissão, sabendo
que só se verificam saltos qualitativos em organismos pujantes e vivos.
Eles hão-de ensinar a uma escola cartesiana, a muitos títulos, que morreu a
filosofia do ser e do logos e vem de nascer a filosofia da acção
e da relação. Eles, "homens do desporto", melhor ainda: licenciados em
motricidade humana, com especialização em desporto e que podem ser os arautos
de uma ontologia nova, onde as referidas categorias de acção e de relação
assumam importância fundamental, em todo o contexto escolar.
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