(Devolvida ao Remetente)
"O atentado demonstra que é apesar de tudo impossível atingir o território
da América sem atentar contra a sua imagem"
Charles Tesson em "Cahiers du Cinéma" - Novembro de 2001
Com os atentados terroristas de 11 de Setembro de Washington e Nova Iorque
pode dizer-se que a realidade ultrapassou a ficção do filme-catástrofe de Hollywood.
Ela cumpre com violência um movimento inverso: reenvia de repente a ficção à
sua própria realidade. À margem do drama terrível que se desenrolou, é uma concepção
cinematográfica americana na sua mais profunda essência que caiu na sua própria
armadilha. É como se o atentado, para lá da imensidão das suas repercussões
no campo político e humano, fosse a actualização da realidade de um esquema
ficcional já filmado, a passagem à realidade que é a sobrevivência da ficção
made in USA: uma cena fantasmática delirante, verdadeiramente grotesca pela
sua fantasia. Todos os que defendem, apressadamente, que o filme-catástrofe,
graças aos efeitos especiais numéricos, é a realidade de um mundo onde toda
a acção espectacular não tem consequências nem retorno - é apenas um filme,
um jogo -, viram de repente argumento e cenários idênticos, desenrolarem-se
sobre os seus próprios olhos. Quando vimos o avião bater na torre, pensamos
em quê? Nas pessoas do avião, nas do edifício. Pensamento aterrorizante que
despertou no mais fundo de nós, no filme interior da nossa existência, a confrontação
imediata e dolorosa da morte de outrem. Por isso, já se disse, esta imagem de
uma torre vista de longe, de um avião que a trespassa, da nuvem de fogo e das
cinzas que voam, assenta sobre uma falsa impressão, um travo amargo, de "dejá
vu". Oferece todas as características visuais de um filme de acção americana
com o b-à-bá logístico dos efeitos especiais: maquetes, incrustação numérica
da chama independente do choque das matérias. Mas esta impressão legítima torna-se
obscena com o que aconteceu no World Trade Center (WTC).
Porque esta familiaridade enganadora impede de ver. O quê? Tudo. Os mortos,
os milhares de desaparecidos, os amigos, os familiares, apanhados para sempre
por este drama vêem passar toda a sua vida no filme deste acontecimento, num
gesto sem verdadeira saída (o espectador coloca-se no lugar do outro, num momento
em que tudo se acaba para ele), que reúne nos seus fundamentos o que o cinema
propõe: identificar-se com o outro, sem o conseguir totalmente. Acima de tudo,
as imagens do WTC revelam uma carência quase orgânica do cinema americano no
seu conjunto. É a distância inultrapassável entre a dimensão espectacular do
segundo avião a bater na torre e a sua dimensão humana, que se torna insuportável,
impossível, como se o espectador, na sua relação com a imagem, que explodisse
pelo que via, por esta montagem impossível entre o que descobre (o drama terrífico),
e o que recorda (as reminiscências do filme-catástrofe). Sendo impossível fazer
coexistir em si mesmo estes dois níveis sem sentir um profundo mal-estar, esta
justaposição torna-se intolerável. Foi necessário que uma imagem fosse um registo
da realidade para se ficar automaticamente comovida do que ela mostra e sugere
- as pessoas no avião, invisíveis mas presentes na imagem - foi preciso que
relevasse um género - o filme-catástrofe - para que gerasse automaticamente
o esquecimento das relações humanas mostradas na representação de um drama.
O que funda o filme-catástrofe, o legitima e o torna suportável aos olhos do
público, é a certeza, caucionada pela ficção, de que tudo o que é encenado nunca
poderá acontecer na realidade, apesar das parecenças com situações desta, de
que ele precisa para funcionar.
Toda a ficção hollywoodiana assenta neste acordo tácito, neste pacto implícito
em que ela visa confortar os espíritos, condição da sua existência como género,
onde a sua dimensão espectacular assegura a promoção publicitária da sua impossibilidade
de se tornar realidade. Donde o despertar brutal, que toca a realidade política
- a incrível vulnerabilidade do território americano - e a outra evidência,
abusivamente consolidada pelo seu cinema. Como se os States, finalmente, descobrissem
que o seu cinema lhes mentiu e que apenas uma outra imagem, a do WTC em chamas
e depois em ruínas - filha natural deste universo cinematográfico - significasse
a que ponto lhes tinham mentido.
Vimos na TV que com um simples jogo de vídeo (Flight Simulator) podemos treinar-nos
a esmagar um avião contra o WTC. Que a numerização cartográfica do mundo assenta
na construção matemática de dados da realidade, já se sabia, mas que este mundo
virtual fizesse o regresso à realidade desta maneira, abrindo a parte lúdica
do vídeo a um pragmatismo insuspeitado, eis o que ninguém pensou. Donde o efeito
"Boomerang", como se tudo o que vimos já tivesse sido configurado por aqueles
que conceberam as imagens que de repente lhes fugiram ao controlo. Aqueles que
vêem no numérico um estrito jogo estético sem ver a sua dimensão política -
no sentido de uma política de representação e dos usos que ela induz - arriscam-se
rapidamente a mudar de opinião.
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