Cinco anos após a sua morte, acaba de ser publicado
o primeiro livro póstumo de Vergílio Ferreira com o título Escrever e
que se integra mais na linha de Conta-Corrente do que no ensaísmo reflexivo
e estético de Pensar (1992), mesmo que o Autor chegasse a ter o propósito
de o intitular como Pensar-II. Mas dizemos que se insere mais nas intenções
literárias e diarísticas de Conta-Corrente porque entre os 378 textos
ou anotações avulsas do livro se pode com clareza perceber que a intenção foi
a de uma vez mais proceder ao registo dos dias que antecederam a sua morte (e
o último texto foi escrito no dia anterior a esse primeiro de Março triste de
1996), mesmo que por vezes evite referir o nome ou facto que observa e critica,
como abundantemente fez nos vários volumes de Conta-Corrente.
Mas Escrever coloca de novo o problema da coerência literária que marca
toda a obra vergiliana: a de sabermos que nem sempre a literatura pode estar
de acordo com a vida, ser o seu sinal evidente e mais aproximado - e todavia
é. E por isso podemos reafirmar que sempre a voz pessoalíssima de Vergílio
Ferreira nos invoca os sinais visíveis de quem, na obsediante procura de uma
clara "explicação" ou "justificação" para a vida a não encontra face à inverosimilhança
da morte ("E nunca mais até hoje soube inventar outro problema", confessa o
narrador de Aparição). Porque é exacto e verdadeiro dizer-se que toda
a obra de Vergílio Ferreira apela, na coerência da sua problemática, para uma
fraternidade entre os homens, grita até ao cansaço a plenitude da vida, onde
desapareçam todas as formasde injustiça ou de opressão para se fazer ouvir a
"voz original" desse mundo absoluto, a voz das origens mais longínquas e profundas,
por onde ressoem sinais nítidos de uma sinfonia em louvor da vida e os homens
não desesperem. "O que existe para o homem é o absoluto da sua hora e tudo o
que para lá existe, existe apenas coordenado com ela, a ela subordinado", proclama
em Invocação ao Meu Corpo (1970).
E nessa forma de tudo globalizar poder assim encontrar talvez uma "explicação"
para o que é no homem mais essencial, a obra vergiliana define-se dentro de
coordenadas que, na aceitação ou recusa dos seus valores mais autênticos, sempre
exigiu que essa coerência intelectual se fizesse por entre muitos sobressaltos,
mas sem deixar que o seu itinerário tão próprio e de excepção na literatura
portuguesa do século passado, se desviasse da sua linha recta pela atitude inconfundível
de ter encarado a literatura como o acto maior e único "de estar vivo". E até
ao fim.
Por isso, esta edição de Escrever (a cargo de Helder Godinho, que coordena
a Equipa que estuda o espólio literário de Vergílio Ferreira), estruturada em
redor de textos escritos ao sabor da corrente e reflectindo sobre a arte, a
literatura, a vida, a morte, a filosofia, a política, revela-se uma vez mais
como essa "arte de composição" que prolonga um ciclo de ensaísmo breve, sempre
no propósito de se interrogar sobre que sentido "dar á vida", pela escrita e
pelo pensamento, debruçando-se sobre o impensável de si mesmo, na hora de despedida,
nos horizontes profundos e extremos, não de um falar por falar, mas antes na
plena consciência de que escrever "é ter a companhia do outro de nós que escreve.
Portanto não te comovas muito, mesmo que ele se queixe. Porque abaixo dessa
lamentação está o vazio infinito da infinita desistência ou desinteresse onde
a palavra já não chega. Quando o que escreve aí desce, a morte tem a sua possibilidade.
Porque deixa de ter significação" - pág. 17.
Mas nos limites possíveis e pessoais desse "acto de escrever" o que se evidencia
na aparente simplicidade de muitos destes breves textos é ainda um apelo, ou
uma recorrência fiel e coerente, a esse mesmo equilíbrio interior de quem sabe
e declara que "a força da nossa verdade tem que ver com a verdade da nossa força".
E, na simples humildade deste livro, feito sem pensar em forma de um "testamento
literário", o que nele mais se impie é a lógica impressiva da sua permanente
interrogação sobre a arte e a vida, que foram os pólos de uma prolongada interrogação
ou explicação dada a si mesmo em mais de cinquenta anos de ofício literário
e numa obra que, entre a ficção inventiva e o ensaísmo reflexivo, foi a herança
deixada pelo autor de Para Sempre, não com o propósito de ainda desafiar
a eternidade, mas talvez como forma de "clamar até aos astros que a verdade
somos nós e que a sua razão última, contra todas as perturbações e oposições
no dizer e pensar, é o porque sim, que é a última razão indiscutível já sabida
desde a infância".
Livro em que os limites do escrever se espraiam numa meditação sentida e comovida
tantas vezes, pelo recurso à anotação breve sobre o quotidiano imediato, entrecruzando
com observações filosóficas que são o corolário de um pensamento afirmativo
e interrogativo em muitíssimas páginas dos ensaios de Espaço do Invisível,
o que nesta obra póstuma mais prende a atenção dos leitores é ainda essa intenção,
chegada de longe, de Vergílio Ferreira poder reafirmar esse "equilíbrio interior"
ou o mesmo "sentimento estético" como pedras angulares para um melhor e claro
entendimento de toda a sua obra. Portanto, se outros méritos não tiver, Escrever
vale por ser um livro-síntese das linhas de força que sustentam toda a obra
vergiliana, que nos ficou como testemunho ou depoimento de quem aos oitenta
anos se foi desta vida com as palavras com que encerra este livro: "Uma vida
longa é uma vida curta porque são restos de nós que ela vai aproveitar. Amores
que se perderam, projectos que se esgotaram, mesmo alguma glória que também
pôde acontecer, são no fim a degradação, o esvaimento do espírito, a abjecção
da sordidez e humilhação. Morrem jovens os que os deuses amam. Deve ser verdade.
Para que eles recolham a si o que é mais belo e triunfal da vida. E é só".
Por último, dizer que esta edição feita por Helder Godinho não é ainda a "edição
crítica" que se impõe de toda a obra vergiliana, mas se revela como trabalho
importante para dar ao leitor todos os pormenores de escrita do próprio livro,
que Vergílio Ferreira não pôde reler nem rever e, portanto, a edição tem mais
de mil e duzentas notas para melhor se entender a "genética" da escrita ou como
modo de interpretar aspectos menos evidentes da sua redacção, em letra sempre
tão miudinha que dificulta a leitura ou a torna por vezes intraduzível, mas
que aparece nesta edição como um trabalho literário de grande rigor e atenção
crítica.
Serafim Ferreira
Vergílio Ferreira
ESCREVER
Edição de Helder Godinho
Bertrand Editora / Lisboa, 2001.
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