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Potala Disco

O nome vem mesmo a condizer: JJ Disco, KTV, Roman style (!) e mais o que os caracteres luminosos vistosamente representam, ocupa um lugar de destaque na capital tibetana. Situada ao canto direito da praça em frente ao Potala - antiga residência dos dalai lamas, hoje mero museu de acesso limitado a três dias por semana - JJ Disco é assim como um foco de néon na noite de Lassa. Mal o sol se apaga, acendem-se as luzes, luzinhas e luzonas do antro nocturno por excelência de todo o Tibete.

A praça, onde flutua o estandarte vermelho amarelo da RPC, desafiante, perpendicular à entrada principal do palácio, liberta dos vendedores ambulantes e dos passeantes ocasionais que a ocupam parcialmente durante o dia, serve agora de campo aberto aos táxis que despejam foliões à entrada do JJ. Também lá estão estacionadas algumas motos. E quando falo de motos refiro-me a máquinas de grande cilindrada, cavalgadas por rapazolas de fato com a marca alinhavada na manga direita, ou de gravata posta sobre uma camisola às riscas. Estes, os rapazes modernos de Lassa. Também os há mais ao jeito punk, sopros da moda que transpôs os Himalaias, vinda lá das bandas de Katmandu.

Mas deixemo-nos de modernices e definamos o espaço. O primeiro sinal que diferencia esta peculiar discoteca - e que intriga o ocasional transeunte -, são os vendedores de espetadas que viram e reviram as brasas enquanto apregoam o seu produto. Têm o estaminé instalado nas escadarias de acesso à discoteca, e, a justificar a sua presença ali, os minúsculos bancos corridos, encostadas as pequenas mesas, raramente estão vazios.

Atraído, mais pelo odor que se liberta do braseiro do que pelos neóns iguais a tantos outros clubes nocturnos e caraoques, decido entrar.

"Sabes quem sou?" - ouço dizer em inglês arranhado, enquanto me entretenho a decifrar o cartaz à entrada. Tenho à minha frente uma chinesa de sapatos altos e vestido branco espampanante com ousado decote para a latitude em questão. "Sou a mama san" - continua ela sem me dar tempo para responder. "As minhas raparigas são muito bonitas...". Não é preciso que ela o diga. Já reparei que no átrio de entrada passeiam-se umas meninas bem parecidas que não estão ali propriamente para dançar. Nem elas nem o guarda de uniforme azul, ar aborrecido, cartão plastificado na lapela, sentado a um canto muito pouco preocupado com o caos provocado pelos clientes que entram e saem da discoteca. Noutra cadeira, está instalado um telefone público, vermelho como todos os telefones públicos da China. Os fios trepam pela parede nua, ainda sem estuque. Por detrás de um espaço vidrado, uma rapariga está sentada sobre um amontoado de colchões de espuma. A seu lado, uma meia dúzia de bicicletas, estacionadas provavelmente os veículos dos empregados da casa, e os mais variados utensílios abandonados ao calha pelo chão. No lado oposto, um reservado com mesas e cadeiras, versa assuntos mais delicados. No átrio, o som disco faz-se perfeitamente ouvir e há quem continue a comer espetadas e a conversar animadamente.

Transposta a entrada do JJ, desfazem-se todas as dúvidas. O JJ é realmente uma discoteca da República Popular.

É noite de sexta feira e o local está apinhado com o mais variado tipo de pessoas. Não faltam os habituais bêbados cambaleantes que se emiscuem com senhoras tibetanas em traje tradicional ou miúdos adolescentes, curiosos, que espreitam a pista de dança, ou as ocasionais meninas atrás citadas que buscam clientes provocando uma aglomeração pouco conveniente à entrada. O gerente do local pelo menos a julgar pela fatiota que enverga - não parece preocupado com a presença de toda aquela gente, feita mirone. As empregadas, essas, de sorriso em riste limitam-se a sugerir que nos sentemos, mas sem forçar muito a coisa, deixando-nos a possibilidade de indecisão. É como eu digo: o JJ é RPD (República Popular Disco). A porta está aberta a todos: chineses, tibetanos e até ao eventual estrangeiro .

O ambiente na sala é de festa de amigos. Nada de "gorilas" à entrada ou gente selecta. Na pista dança-se com estamina. A intervalar a batida tecno ouvem-se baladas dos Scorpions, e um saxofonista ao estilo Kenny J - mas com muito mais sentimento e sintetizadores interpreta um lânguido e longo slow. Os pares aproveitam para saltar para a pista. Pares deveras singulares: raparigas enlaçadas com raparigas e até mocetões do Exército Popular de Libertação.

À entrada, um frigorífico mantém as Pepsis, a água mineral e as latas de cerveja Blue Ribbon bem ao fresco. No balcão, à luz da vela, a empregada vai aviando os pedidos para as mesas. O consumo mínimo no JJ é de 20 yuan, o preço de uma cerveja.

Se até à altura hesito entre o ficar ou ir-me dali embora, a súbita aparição em palco de um personagem trajando uniforme de guarda vermelho, resolve definitivamente a questão. Em boa hora me sento, pois assisto a uma inesquecível performence. No palco está agora a atracção da noite, anunciada no cartaz exposto à entrada. Z. Zhang assim se chama - é uma estrela de rock local. Acompanhado pela sua banda oferece-nos um espectáculo cheio de energia. Comunicador nato, o versátil artista chinês começa por interpretar vários temas brandindo o livro vermelho de Mao Zedong. Boné, fato e óculos a condizer. O teor da lírica só pode ser controverso. No momento seguinte, qual passe de mágica, metamorfoseia-se em mandarin (sem sequer lhe faltar o rabicho de manchu), e logo depois em mongeguerreiro de Shaolin, executando movimentos de artes marciais enquanto canta. O tema seguinte, Zhang interpreta-o fazendo o pino. Segue-se um instrumental. Desta feita, o músico demonstra os seus dotes de baterista. Enquanto isso, símbolos celtas são projectados no palco. De novo ao microfone, Zhang retoma a conversa com a assistência. Esta, provavelmente alheia ao teor controverso da sua actuação, aproveita para dançar. O músico recria agora êxitos de Cui Jian , o dito pai do rock chinês , conseguindo a aderência de todos os presentes. Um homem de sete instrumentos este Zhang, não haja dúvida.

Terminada a sua actuação segue-se um corpo de dança. Duas raparigas e um tipo vestidos de panteras negras, repetem aqueles gestos que todos conhecemos ao som da música que todos ouvimos... E a coisa poderia ter continuado, se um arreliador corte de energia tão frequentes em Lassa - não viesse interromper a festa por uns longos minutos. Cá fora, a chuva de monção emprestada do subcontinente faz os seus estragos. Às escuras, continua-se a consumir espetadas e um rapaz maltrapilho, à entrada, compõe as varetas do guarda-chuva para depois acompanhar os noctívagos que saem do JJ até aos táxis que aguardam na praça alagada. São 11:20 da noite. JJ encerra a porta à meia noite.

A luz acaba por voltar, a pista volta animar. No palco actua agora um daqueles super chatos cantores de charme. Sem interesse... Prefiro enfrentar a praça alagada. No Potala ainda há luzes acesas. O serviço telefónico IDD fechou já as suas portas, apesar de faltar ainda meia hora para as 24 horas. Iluminação pública, népias. Os faróis das viaturas encandeiam-nos. As possibilidades de acidente são várias: cair num buraco de esgoto aberto, bater com o pescoço num dos arames presos aos postes públicos ou enfiar o pé numa das inúmeras poças. É só escolher.

Chove durante 15 minutos e Lassa fica alagada. Se chovesse uma hora a cidade seria, com certeza, considerada zona de calamidade pública.

Joaquim Castro, em Lassa


  
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Autoria:

Joaquim Castro
Fotógrafo e Jornalista
Joaquim Castro
Fotógrafo e Jornalista

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