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Maria, Simplesmente Analfabeta

Agora aos 64 anos é a Dona Maria. Já foi a tia Maria ou só Maria quando mais nova. Título de senhora foi coisa que nunca lhe deram. "Isso é para as finas", diz-nos. Gaba-se de ainda andar por cá, rija, e confessa, sem dizer a idade, que a maior parte da gente da geração dela já foi...

"Porque é que digo que aqui há uns anos só me tratavam por ti Maria e agora passei a dona? Os senhores pensam que isto do povo é tudo às calhas, mas não. O povo daqui é muito direito sabe-se dar ao respeito. Se lhe contasse o que trabalhei nesta vida até se assustava. Só me lembro de trabalhar. De pequenita já era a rega do milho, as cabras, era o que calhava conforme o tempo. Trabalhei muito. O que tenho, a mim o devo. Devo-o a este corpo que vê aqui. Agora para o fim as coisas andaram muito mudadas e apliquei uns dinheiritos. Como? Ora, aqui e ali, a gente vai andando e vai vendo o que dá e o que não dá. E o que é que dá? Ora, quer que lhe ensine o padre nosso? Se comprar para aí uns apartamentos e os deixar de remanso dois ou três anitos para os vender depois, vai ver se dá ou não dá... Está a ver como se passa de ti Maria a dona Maria? Eu já lhe disse que o povo sabe dar o lugar que cada um tem".

A dona Maria tem um ar rijo, olha-me com um olhar direito e de cima, como quem sabe de mais. Impressiona-me. Leio nela uma compreensão do mundo e da vida. Continuamos a conversa.

"Sim, a trabalhar desde o tempo em que deveria ter ido para a escola. Naquele tempo não era como agora. A escola era para os ricos. Aqui já havia escola, mas era só para os ricos. A gente tinha de trabalhar, que os pais bem precisavam de nós. Se gostava de ter ido? Então não havia de gostar? Mas era tudo muito pobre. Mesmo com a criançada a trabalhar, era só para o caldo e não eram todas as casas que o tinham. Passou-se muita fominha. A gente de agora nem acredita. (...) Claro que tenho pena de não saber ler. Aqui há uns 30 anos, ainda andei uns bocaditos, numa mestra, mas não deu. Porquê? Olhe da cabeça não foi, que nisso sempre fui um alho. Em contas de cabeça não há quem me leve. Lembro-me de coisas que não é qualquer um. Se lhe começasse a contar nunca mais acabava. Não, não aprendi nada com a mestra. Ó homem não vejo uma letra do tamanho de um combóio. Como lhe ia a dizer, cabeça foi coisa que nunca me faltou, graças a Deus, mas já era tarde, já era a mão dura. Aquilo ria-se tudo. Eu nem o lápis conseguia segurar nas mãos, quanto mais fazer aqueles sarrabiscos todos. Para estar ali a servir de risota não valia a pena, fui-me à vida que havia muito que trabalhar"

"(...) Sim, sim, tive um negócio desses, sem saber ler nem escrever. Como é que você diz? Importação e exportação? Se calhar é. Comprava e vendia para a Espanha. Uns badamecos começaram para aí a fazer umas fabriquetas de calçado e eu vi que eles andavam enrascados. Não sabiam onde ir buscar as peles. Andavam a ser levados e bem levados. Um dia apareceu-me aí um vendedor e eu aproveitei. Como? Olhe que se lhe contasse tudo até tinha graça. Não lhe posso é contar tudo, ficava a saber mais que eu. Tudo começou porque o vendedor me confundiu com outra que agora está para aí muito rica. Fiz-me de lorpa. Olhei para o mostruário discuti isto mais aquilo, mais preço menos preço, mandei-o vir no dia seguinte para a encomenda. Pergunta aqui, pergunta ali, que eu não queria que o homem me levasse à certa. Fiz negócio. Durante três anos, os daqui compravam e vendiam tudo, por mim. Se soubesse ler a coisa não tinha ficado por onde ficou. Mas não estou mal... até estou de saúde"...

Não estará mal, não, dona Maria.

José Paulo Serralheiro


  
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Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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