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A propósito do recém-criado Regulamento das Modalidades de Acções de Formação ... ou o direito à indignação!

A aprovação do Regime Jurídico da Formação Contínua de Professores ( Dec. Lei 207/96 ) constituiu uma etapa decisiva da institucionalização de um sub-sistema de formação cuja importância estratégica decorre, quer do conjunto de disposições legais inerentes à Lei de Bases do Sistema Educativo, quer das exigências da dinâmica desenvolvida a partir do que se convencionou designar por Reforma Educativa.

Estávamos então perante um texto fundamental que, embora perfilhasse de um conjunto de pressupostos conceptuais e epistemológicos influentes sobre os modelos de formação a implementar, permitia, apesar disso, alguma autonomia no campo das decisões a adoptar nesse âmbito.

A publicação em 22/7/97 do Despacho nº 4469/97, da Secretária de Estado da Educação e Inovação, complementada pela Carta-Circular - 5/97, de Julho, do Conselho Científico-Pedagógico da Formação Contínua, em que são definidas a contabilização horária e o Regulamento das Modalidades de Acções de Formação ( regulamento que entrou em vigor no dia 1 de Outubro), surgem como um pretexto para uma reflexão sobre a necessidade da definição de uma lógica global de formação que tenha em conta as exigências da função docente e, em articulação com estas, o desenvolvimento pessoal e profissional dos professores.

1. A Formação centrada no Desenvolvimento Pessoal e Profissional dos Professores

A definição de uma lógica global de um Sistema de Formação Contínua não pode ser reduzida a uma discussão técnico-metodológica alienada das condições políticas, económicas, sociais, culturais e educativas que moldam o contexto no âmbito do qual esse processo se estrutura. Deste modo, a arquitectura dos documentos em análise terá de ser compreendida, em última análise, à luz do esforço que o Estado pretende protagonizar para adquirir uma maior legitimidade no controlo da profissão docente.

Popkewitz & Pereira (1992) num texto referente a um estudo comparado sobre as relações entre reformas educativas e dispositivos de formação de professores em oito países ( Portugal, Espanha, Reino Unido, Suécia, Islândia, Finlândia, E.U.A. e Austrália) concluem que todas as iniciativas relacionadas com as mudanças na formação traduzem sobretudo a mudança dos padrões de regulação e de poder existentes entre o Estado e as instituições educativas que, por sua vez, se articulam com as transformações políticas, económicas, sociais e culturais que têm vindo a ocorrer nos países industrializados desde o final da II Guerra Mundial.

Em Portugal a racionalização e a reestruturação do Sistema Educativo estão intimamente relacionadas, quer com a estabilização do regime democrático e a integração na Comunidade Económica Europeia, quer com a consequente exigência de desenvolvimento e modernização global do país. As tentativas mais recentes de reforma do Sistema Educativo explicam-se pois por este movimento estrutural da sociedade portuguesa contemporânea, o qual tem implicações particulares na dinâmica de formação contínua de professores já que, para além das transformações sociais, políticas, económicas e culturais das sociedades modernas, havia que encontrar respostas também para a própria crise de identidade socioprofissional dos professores, impossível de escamotear nas suas múltiplas manifestações.

A definição de uma lógica global subjacente ao subsistema de formação contínua teria então de começar a ser esboçada a partir da decisão entre duas opções fundamentais que permitissem definir se esse subsistema se organizava no sentido de contribuir para o desenvolvimento pessoal e profissional dos professores ou no sentido de contribuir para o desenvolvimento institucional do sistema educativo. António Nóvoa (1991) tendo sido o autor que levantou em primeiro lugar esta questão considera que a escolha por uma ou outra das opções enunciadas implica, no primeiro caso, a valorização da emergência de uma nova cultura profissional no seio do professorado e concomitantemente o desenvolvimento de uma nova cultura organizacional no âmbito das escolas ( Bell & David, 1991, citados por Nóvoa, 1991 ) que no seu conjunto deveriam contribuir para o desenvolvimento pessoal e científico dos professores no 'quadro de uma autonomia contextualizada' (Nóvoa, 1991). No segundo caso, e ainda segundo Nóvoa, a lógica subjacente ao desenvolvimento enunciado visaria sobretudo instituir novos dispositivos de tutela a partir dos quais se produziriam novas regulações.

A organização do subsistema de formação contínua terá de ser necessariamente distinta, conforme se oriente por uma ou outra das lógicas de desenvolvimento expostas, às quais não são alheias nem a amplitude e a natureza da mudança tentada através dos projectos de formação contínua, nem o grau de responsabilidade dos professores no processo de produção e pilotagem dessa mudança.

De acordo com este quadro conceptual confrontar-se-iam, então, dois tipos de lógicas principais: uma lógica de inovação e uma lógica de reforma( Canário, 1991) que definiriam processos de mudança ( determinantes sobre a concepção dos projectos de formação ) marcados por preocupações globais distintas.

Para A. Nóvoa (1991) um subsistema de formação contínua, subordinado a uma lógica de inovação, configurar-se-ia então em torno de três eixos estratégicos articulados entre si num todo congruente:

a) o do desenvolvimento pessoal, que se define essencialmente pela necessidade de se ' investir a pessoa e a sua experiência ' ( Nóvoa, 1991) no âmbito dos processos formativos;

b) o do desenvolvimento profissional, que corresponde por sua vez à necessidade de se investir ' a pessoa e os seus saberes ' ( Nóvoa, 1991) a esse nível;

c) o do desenvolvimento organizacional, que se relaciona com a necessidade de se investir ' a escola e os seus projectos ' ( Nóvoa,1991) no espaço e no tempo de formação.

Deste modo não é possível pensar um subsistema de formação de professores sem a consolidação de redes de colaboração e espaços de parceria que permitam a concretização de projectos formativos inovadores. Nóvoa (1991) citando Hameline considera que qualquer processo de formação deve mobilizar vários tipos de saber : os saberes provenientes das práticas reflexivas, os saberes das teorias especializadas e os saberes produzidos na militância pedagógica que no seu conjunto acabam por implicar a existência de um espaço de colaboração que deverá contar, para além dos professores, com outros personagens que possam assumir um papel significativo e desafiante no processo de desenvolvimento e formação dos docentes.

 

2.O Regulamento das Modalidades de Acção de Formação : algumas questões em aberto

O Diploma que regulamenta o Regime Jurídico da Formação Contínua de professores (Dec. Lei nº 207 /96) manifesta algumas destas preocupações a partir das quais pretende afirmar o seu carácter inovador, nomeadamente quando: (i) pretende recusar o desenvolvimento de um subsistema de formação a partir de um plano centralizado e gerido pelo Ministério da Educação1; (ii) define um vasto leque de modalidades de formação 2 , nas quais se incluem as oficinas de formação, os seminários, os estágios, os projectos e os círculos de estudo ou quando afirma o direito de cada professor definir o seu próprio processo de formação e desenvolvimento profissional.

A questão que se coloca é a de saber se tais intenções expressam só por si uma lógica inovadora, tal como temos vindo a definir neste texto ou se, pelo contrário, traduz antes uma dinâmica de reforma e adaptação do sistema educativo de cariz neo-liberal.

Assim, embora se possa reconhecer a existência , formalmente, de uma lógica descentralizadora na organização do subsistema em questão, deve também reconhecer-se que isso não significa que a relação centro/ periferia tenha sido subvertida, já que o que se pode constatar é sobretudo a emergência de um novo tipo de mecanismos e dispositivos reguladores da actividade docente em geral e (por consequência) do subsistema de formação contínua em particular. Incluem-se nestes novos dispositivos de regulação as modalidades de creditação propostas3 e em particular a Carta-Circular do CCPFC - 5/97 que regulamenta as Modalidades das Acções de Formação, a partir dos quais o subsistema de algum modo se revela ao prever, no caso desta última, a creditação de modalidades como as Oficinas de Formação, de Estágio, de Projecto ou de Círculos de Estudos somente após parecer fundamentado de um Consultor de Formação, ou por um especialista nas temáticas em causa, quando se pretendia no Nº 1 do Artº 7º do Dec. Lei 207/96 que estas fossem mais umas das modalidades de formação contínua.

Em última análise estamos perante a expressão de uma postura cujas implicações sobre a estrutura e a dinâmica dos Centros de Formação vale a pena referir, a começar pela valorização do papel dos Directores e das Comissões Pedagógicas desses Centros como órgãos de gestão burocrático-administrativa, confinados apenas a produzir análises de necessidades de formação, a contratar formadores, a organizar o apoio logístico às acções, a gerir os fundos disponíveis ou a controlar o processo de avaliação. Tal postura é tanto mais grave quando se sabe que estes órgãos por terem sido democraticamente eleitos são os únicos que estão mandatados para desenvolver o projecto de formação de um dado território educativo. A contratação de Consultores de Formação com as prerrogativas que o Regulamento das Modalidades de Formação propõe, é um acto que põe em causa a autonomia de cada Centro e representa, em última análise, o triunfo de uma concepção de formação tecnocrática, a partir da qual se pretende ocultar a construção de um dispositivo de domesticação e tutela dos Centros de Formação de professores. Não se nega a possibilidade destes Centros possuírem assessores pedagógicos e especialistas nas mais diversas matérias, o que se afirma é que a função destes profissionais seja configurada e definida pelos seus órgãos de gestão. Pretender o contrário é um acto de hostilização à ideia, a partir da qual se defende, que compete, em última análise, aos professores definir o seu próprio projecto de formação. Se tal pressuposto nem sempre se tem vindo a verificar, avalie-se rigorosa e honestamente as razões subjacentes aos projectos que têm servido apenas para a obtenção de créditos e conclua-se que tal situação não pode ser resolvida pelo aparecimento desta nova espécie de pequenos 'Big Brothers' que o Conselho Científico-Pedagógico da Formação Contínua acabou de criar. É tempo de indignação !

 

 

Bibliografia

Canário, R. (1991). Escolas e mudança: da lógica da reforma à lógica da inovação. Lisboa: Comunicação apresentada no II Coloque National AIPELF - Section Portugaise

Nóvoa, A. (1991). Concepções e práticas de formação contínua de professores. In Formação Contínua de Professores: Realidades e Perspectivas, pp. 15-38

Nóvoa, A. (1992). A Reforma Educativa Portuguesa: Questões passadas e presentes sobre a formação de professores. In Nóvoa, A.; Popkewitz, T.S. (Eds) Reformas Educativas e Formação de Professores. Lisboa: Educa

Popkewitz, T.S. & Pereyra, M.A. (1992). Práticas de Reforma na Formação de Professores em oito países: esboço de uma problemática. In Nóvoa, A.; Popkewitz, T.S. (Eds) Reformas Educativas e Formação de Professores. Lisboa: Educa

FIM

 

Ariana Cosme


  
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Autoria:

Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto

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