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Dois em um

Este será um texto a dois tempos. O primeiro pretende ser uma breve e singela evocação dos dez anos da publicação da Proposta Global de Reforma da C.R.S.E. Sobre o segundo não se diga que estou mancomunado com o ministério porque, como se sabe, tanto aprovo como reprovo as suas iniciativas, sem medos, sem condescendência e sempre que me apetece.

Primeiro tempo

Em 1988, os subscritores da Proposta Global de Reforma afirmavam que 'o adestramento não define a educação' e que 'a educação é incompatível com a organização autoritária da vida'. Não estavam sozinhos nas suas convicções. Eu tive acesso a um outro 'relatório' que, provavelmente por esquecimento, não foi tornado público na devida altura e correria o risco de se manter inédito. Esse 'relatório' é subscrito por dois ou três ex-alunos da Escola que os mentores da Reforma se esforçaram (por enquanto, ainda em vão) por erradicar. Reza assim:
'Os pais tiravam os filhos das escolas para eles irem trabalhar, alguns pais não se importavam com os filhos e o Governo também não se importava com o Ensino (...) Não havia possibilidades como há agora (...) Antigamente, ia-se fazer exame a Santo Tirso porque aqui não havia condições para nada'. 'As escolas não tinham condições como têm agora, eram pobres, era só uma sala e uma retrete. Os deveres eram mais difíceis. Era só ditados, cópias, contas e outras coisas ruins. E os alunos tinham que decorar muito.' 'Havia menos livros e eram mais difíceis e sem desenhos. Os de agora têm mais figuras, para ajudar a aprender melhor. Não havia escolas para ensinar todos. Ninguém era obrigado a ir à escola e as pessoas não iam à escola e ficavam sem saber ler nem escrever.'
Haverá nesta análise um acentuado exagero? Os 'bons e os maus' da infância encontram correspondência nos contrastes maniqueístas entre uma escola 'antiga' e uma outra dita 'moderna'. Mas o 'Século da Criança' está prestes a terminar tal como começou, ressalvada uma declaração de direitos aprovada pelas Nações Unidas e jamais cumprida, pelo caminho ficaram projectos por cumprir, as reivindicações da Pedagogia, da Sociologia, ou da Psicologia, um discurso teórico e inútil. Ficou uma escola ensimesmada, a dura realidade da massificação sem diversificação. Mas continuemos a leitura deste relato de recordações indeléveis:
'Tínhamos que estar com respeito e atenção, íamos ao mapa e tínhamos que saber onde se situavam as serras, o nome delas, qual era a mais alta e a mais baixa, tínhamos que saber os rios todos, onde nasciam, por onde passavam e onde desaguavam, as linhas férreas, por onde passavam e quais as suas estações, a tabuada tínhamos que a saber salteada, etc. Quando abríamos o livro de história, sabíamo-lo de cor, de uma ponta à outra, só alguns que não eram tão inteligentes é que não sabiam.'
Será também oportuno realçar o recurso aos apoios e complementos educativos da Época: 'uma palmatória com a grossura de dois dedos cheia de buracos e, quando a professora já estava cansada, mandava bater a um dos alunos que soubessem mais e, se batessem devagar, ela batia neles, era porrada por todos os lados, malhávamos com a cabeça contra o quadro e alguns escondiam-se debaixo das carteiras.'
Os anónimos autores deste 'relatório' dão a entender que, por via dos métodos em voga, andavam 'tolhidos de medo, era medo por todos os lados, tinham medo de ir para a escola e medo de ir para casa'. E, sem precisarem de recorrer à emproada prosa de alguns teóricos da nossa praça, contrariam os adeptos da pedagogia musculada de então, afirmando que 'quem não vai por palavras também não vai por porradas'.

Segundo tempo

Longe vai o tempo que este secretíssimo 'relatório' nos descreve. Mas os seus efeitos ainda hoje se fazem sentir. A julgar pela quantidade das intervenções, este país possui mais especialistas em política educativa que professores. Atente-se, por exemplo (e julgando credível uma notícia de jornal), à descrição da última reunião da Comissão Parlamentar da Educação da nossa Assembleia da Republica.
Pouco se discutiu sobre Educação. Valores mais altos, tarefas ciclópicas e urgentes impediram que mais de metade dos membros da comissão estivessem presentes (estão recordados de um célebre debate sobre Educação que decorreu num hemiciclo quase vazio por força da irresistível atracção de um jogo de futebol que a televisão transmitia no mesmo horário?).
Sem quorum, os abnegados deputados que restavam desta comissão especializada comportavam-se com a dignidade devida: passavam recadinhos, distraíam-se na leitura de revistas, saíam e entravam na sala sem cerimónia, atendiam o inevitável telemóvel, envolviam-se em tarefas que nada tinham que ver com o cerne da reunião, a saber, a análise de um documento-proposta de reforma que lhes havia sido distribuído duas semanas antes.
Era suposta a sua discussão perante o Ministro da Educação e três Secretários de Estado, que, para o efeito, ali se deslocaram. Após a apresentação do documento feita pelo senhor ministro, um dos senhores deputados esforçou-se por manter a reunião no mesmo ambiente lúdico e reinadio, tendo conseguido atingir os seus objectivos, a avaliar pelo riso generalizado que provocou com intervenções que nada acrescentaram ao debate. Concluiu que 'o Governo não quer fazer reformas'... e mais não disse.
Bastaria aos senhores deputados terem lido as crónicas do Eduardo Prado Coelho (que é um senhor que sabe de tudo um pouco e que já disse que o tempo das grandes reformas acabou). Mas nem isso devem ter lido por terem mais que fazer, o que explica que idêntico discurso proferido pelo senhor ministro caísse em saco roto (o povo é que tem outros aforismos para estas ocasiões mas, por respeito aos mui dignos representantes da nação, os dispensarei). E, após escassas e extemporâneas interpelações e outras tantas manifestações de senso comum pedagógico, se deu por encerrada a reunião.
S. Marçal nos proteja!

José Pacheco


  
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Edição:

N.º 68
Ano 7, Maio 1998

Autoria:

José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves
José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves

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