Página  >  Edições  >  N.º 136  >  Facilitismos (II)

Facilitismos (II)

O Manelinho obteve um vinte no exame de Educação Ambiental. Os orgulhosos pais presentearam-no com uma nova consola. O jovem recolheu ao quarto, desfez o embrulho e aprontou os polegares. O invólucro de plástico, a caixa e demais desperdícios sem serventia atirou-os o Manelinho janela fora, que nisso ele saía ao pai, exímio no arremesso de caroços de fruta e pontas de cigarro pela janela do carro. Quem sai aos seus?
A Tininha, colega de turma do Manelinho e aluna menos voltada para o marranço, tinha arrancado um tangencial 9,5 no mesmo exame. A Tininha foi visitar o colega. Antes de tocar à campainha, recolheu o lixo espalhado no passeio mesmo por baixo da janela do quarto do Manelinho. E colocou-o no contentor, mesmo ali ao lado.
Enquanto reflectimos sobre o visível paradoxo, passemos os olhos por uma carta que recebi de um professor da escola do Manelinho e da Tininha:
?Agora, que o fim do ano está aí, é que começam as polémicas. Se calhar, porque na estratégia de mudar devagarinho, chegamos a um ponto difícil de engolir para muita gente. A tal gente que, como bem referes, pensa que só há uma maneira de ensinar e que tudo passa por exames finais. Nos períodos anteriores, até fui fazendo as ditas fichas. Decidi que no 3º período não haveria fichas. Muito menos "provas finais". Alguém me disse que era obrigatório fazer as ditas provas, para ficarem arquivadas no processo. Ou seja, para um inglês qualquer as ver. Como não sou inglês, nunca vi as que os meus alunos fizeram no ano passado. Realmente, o mundo está doido. Imagina que os alunos das outras turmas estiveram 15 minutos a copiar do quadro a matéria (certamente inorgânica) que vai sair nas ditas provas finais. As tais que vão decidir quem passa e quem não passa. Foi por isso que se instalou entre os meus alunos um pânico de morte. Resolvi imediatamente o problema. Disse-lhes que não havia provas. Regressou a calma. Enfim, meu amigo. Temo que a escola seja a mesma por muito tempo. Uma triste mesmice. Um abraço de um professor desiludido com o que vê à sua volta, mas cheio de vontade de continuar?.
Falando sério? Freudenthal escreveu: "o exame torna-se um objectivo; o que vem para exame; um programa; o ensino da matéria para exame, um método?. O ex-ministro Marçal Grilo afirmou que ?as provas globais começam a ser inúteis?. Vá-se lá saber porquê o actual ministro ressuscitou um tenebroso debate alimentado da ingenuidade de uns quantos e da militância reaccionária de tantos outros.
Se quisermos falar de avaliação em linguagem de gente, poderíamos dizer que a quase exclusiva utilização de um mesmo tipo de instrumento de avaliação tem sido responsável por graves erros. Atenda-se ao exemplo do candidato a medicina que, por uma centésima, não acedeu ao curso desejado.
Deixemo-nos de entretenimentos fúteis! Os fervorosos defensores dos inúteis exames saberão em que consiste assegurar a validade ou a fidelidade de um item? Saberão aquilatar da subjectividade da correcção de uma prova de exame? Terão conhecimento das grosseiras fraudes que os exames engendram? Terão passado, alguma vez, pela angústia da espera, foram afectados por uma ansiedade geradora de bloqueios? Os debutantes e amadores das coisas da Educação não leram nos jornais ? que literatura especializada não terão lido, a avaliar pelos disparates que vão debitando na comunicação social ? notícias de frequentes e abissais alterações de pontuação que decorrem da reapreciação de recursos?
Na avaliação que ainda vamos tendo por hegemónica, é bem visível a ancestral prática selectiva. O ensino em massa é coerente com uma avaliação em massa. Os professores lamentam o dispêndio de tempo posto na correcção de exames e alegam que o ministério os explora como mão-de-obra barata. O ministério, por sua vez, gasta fortunas em comissões a quem compete elaborar os testes e coordenar o serviço de exames, em viaturas e seguranças que transportam envelopes lacrados como se fossem as jóias da coroa.
Se outra razão não houvesse para acabar de vez com exames, uma razão se imporia. Associada à ideia de exame há sempre a probabilidade de utilização de cábulas e ?copianços?. Para cada sala de exame que se preze, são escalados professores que, pressupostamente, são o garante de que os examinados não ?copiam?. Os ?vigilantes? partem, pois, do pressuposto de que todo o aluno é, até prova em contrário, potencialmente desonesto. Haverá princípio mais anti-pedagógico que este? Os opinion maker do costume saberão distinguir um professor de um polícia de giro (sem ofensa para o polícia, claro!)?
Um exame é, normalmente, um teste de papel e lápis que pouco ou mesmo nada avalia. Só quem não conhece outros e mais fiáveis modos de fazer avaliação poderá defender o desperdício. Eu poderei entender que os leigos dêem tratos de polé ao assunto e abordem a problemática na perspectiva do senso comum. Até poderei entender que, à míngua de uma sólida e coerente formação, muitos professores se refugiem na segurança do que melhor conhecem e dominam ? qual o instrumento de avaliação que a maioria dos professores aprendeu a dominar (até à exaustão) dos bancos da instrução primária à secretária de docente? Foram fichas, provas, testes, frequências, exames orais e escritos sem conta! Enfim! Facilitismos! Só não consigo entender os responsáveis que insistem na ideia peregrina e facilitista de que os exames poderão constituir-se na panaceia redentora dos males que afectam o sistema educativo.
Um exame é um mero instrumento de discriminação, de selecção arbitrária, até mesmo de exclusão escolar e social. Por ironia, na tradição académica, o ?bom professor? é, frequentemente, o que consegue mais elevados índices de reprovação. É evidente a ingénua crueldade das vítimas da rigidez e do acriticismo. Os exames constituem-se, não raras vezes, em instrumentos de poder simbólico, álibis de profissionais irresponsáveis, acomodados, alienados, facilitistas.
O professor autor da carta é uma saudável excepção à regra. Pensa. E mostra saber, como qualquer professor minimamente informado das coisas da docimologia, que o exame (teste, prova, ou outro nome que lhe derem) é o instrumento de avaliação mais falível que se conhece, e que há modos mais fiáveis de avaliar. Se o ministério quisesse ter a bondade de o reconhecer, nem seria necessário chamar o Manelinho à colação. E, se o ministério anda (como diz que anda) tão preocupado com ?transições traumáticas entre ciclos de ensino?, porque não acaba com os ciclos? Diria Monsieur de La Palisse que, não havendo ciclos, não haveria transições entre ciclos. Concomitantemente, seriam dispensados os caros, inúteis e facilitistas exames de transição. Quanto se pouparia! Já estou a ver a Dona Manuela felicíssima e comovida perante este inesperado contributo para o seu combate ao deficit orçamental.


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 136
Ano 13, Julho 2004

Autoria:

José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves
José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo