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Pedras e Símbolos

Fez há pouco um ano, em Novembro último, que os jornais não oficiosos de Luanda se insurgiram contra a demolição, por alegado estado de ruína, de um vetusto edifício da baixa histórica da capital angolana, conhecido por "palácio de Dona Ana Joaquina".
Tornou-se esta Senhora uma figura emblemática da sociedade crioula luandense do século XIX: mestiça rica, educada, conviva de governadores, em cujo palacete reunia a fina flor da burguesia, num tempo ainda em que os negros e os mestiços ricos e educados de Luanda conviviam descomplexadamente com os seus "iguais" brancos, como eles comerciantes, funcionários públicos, proprietários, mercadores de escravos e armadores de navios negreiros, com bens e interesses repartidos por Angola e Brasil.
O palacete de Dona Ana Joaquina dos Santos Silva, a "rica-dona de Luanda" - como lhe chamou o historiador Júlio de Castro Lopo - valia como um símbolo desse tempo em que a escravatura ainda era defendida por alguns notáveis, porque - no dizer do historiador brasileiro Pedro Calmon - "a moral do comércio era diferente do conceito filosófico do século XIX: louvava-se no costume e na tradição", embora na segunda metade deste século, a que pertencia Dona Ana Joaquina, o tráfico já estivesse estigmatizado desde a legislação de 1836 do marquês de Sá da Bandeira e sobrevivesse na clandestinidade.
Demolido agora o imponente, mesmo arruinado, prédio, às ordens das autoridades, dir-se-ia que se desejava apagar o símbolo de um passado de más memórias que não tinha o "direito" de competir com a "modernidade" dos prédios circundantes; e que, desaparecido, era como se estivesse lavada a mancha horrível de um período da história colonial que não poderia ser grato aos "novos" angolanos.
Mas não pensavam todos assim. Protestaram contra a "Morte à História de Angola" (título do semanário "Angolense") arquitectos como António Gameiro, escritores como João Melo, historiadores como Rosa Cruz e Silva, académicos como Vicente Pinto de Andrade, todos angolanos de pele escura - e faz-se esta especificação só para que um observador distante os não julgue reféns de qualquer complexo luso-tropicalista ou brancocêntrico...
É particularmente significativo, pela oportunidade e alcance pedagógico, um artigo, publicado naquele mesmo jornal, do professor universitário Vicente Pinto de Andrade, em que relaciona as componentes históricas da identidade nacional dos povos. Depois de cotejar o esforço de preservação do património arquitectónico colonial que continua a ser feito no Brasil com a indiferença das autoridades angolanas responsáveis pela demolição de um prédio onde "também se falava quimbundo e português, ao mesmo tempo que se dançava a quadrilha e a massemba (...) e se conspirava contra os portugueses", remata: "A nação angolana é um projecto em construção permanente: não se compadece com purgas da memória. Quaisquer que elas sejam."
De facto, a História é o que é, a despeito de poder ser lida de vários ângulos, como naquele conceito de Montaigne sobre a Verdade: como um jarro com duas asas, tanto se pode pegar por um lado, como por outro. Não adianta rasurá-la, porque, entretecida de factos, símbolos e memórias, mais cedo ou mais tarde aparecerá um "arqueólogo" para cavar nas profundezas e operar reconstituições. E então, empregando as palavras de António Sérgio, até as "pedras mortas" se tornarão "pedras vivas", e os símbolos, numa certa época desprezíveis, poderão ser recuperados ou ressurgir espontaneamente, sobretudo quando são uma componente daquilo a que o antropólogo Jorge Dias chamava a "personalidade-base" do povo, e é capaz de sobreviver à "autocracia que impõe a esse povo normas de conduta" que não se adequam à psicologia colectiva.
Vem tudo isto a dois propósitos: da venda que alguns portugueses estão a fazer, para Espanha, de "pedras antigas", geralmente saídas de aldeias do interior do país, que lá se transaccionam por bom preço; e da distribuição pelas escolas, por iniciativa do Governo, de um "kit" (isto é: conjunto) de "peças-símbolos", como a Bandeira e o Hino, destinadas a revitalizar sentimentos patrióticos entre as camadas mais jovens da população.
Se tudo isto é uma necessidade, quer dizer que também é um sintoma: o de que a identidade nacional (a Bandeira e o Hino, sendo "republicanos" não deixam de ser um símbolo identitário intemporal) está a sofrer erosões ou ameaças delas e o Governo considera útil recuperar práticas antigas (mas não muito) do tempo da "autocracia" salazarista, quando o convívio das crianças das escolas com a Bandeira, o Hino, a Cruz e as fotografias do Presidente da República e do Chefe do Governo era uma componente da formação da "cidadania".
Não parece que a "recuperação" seja reprovável - se é uma "necessidade". Como também não parecerá reprovável a exuberância das iniciativas que o Governo ou organismos oficiais puseram nas realizações celebrativas da Descoberta ou Achamento (significam a mesma coisa) do Brasil, - se as evocações da História servem como antídoto a uma eventual "apagada e vil tristeza" e se destinam a espevitar o "orgulho nacional", porventura tão ameaçado de erosão como pensava o Governo em 1940, quando embandeirou o país para comemorar o oitavo centenário da Fundação Nacional.
O problema é outro: saber porque não se respeitam as "pedras" que fazem história e, por isso, são identitárias de alguma coisa; e analisar o que está subjacente a uma suposta fraqueza de "cidadania".
Mas, principalmente, descobrir se o Português de hoje, tão ligado psicologicamente aos três FFF como no tempo do Estado Novo, - a julgar pela imagem que dele nos dá a Comunicação Social - não é o mesmo de ontem, parecendo outro; ou se, face a um qualquer "Big Brother", capaz de transtornar, enformar ou disformar a "personalidade-base" das nações, - em Portugal ou em África - é necessário compreendê-lo ou neutralizá-lo.

Leonel Cosme
escritor, investigador


  
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Edição:

e
Ano 9, Dezembro 2000

Autoria:

Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto
Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto

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