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JOÃO RUI DE SOUSA ou a nocturnidade da escrita poética

Estudioso da obra de outros poetas (Pessoa, Cesário Verde, Adolfo Casais Monteiro, Jorge de Sena, António Ramos Rosa e outros) e ligado a revistas poéticas como Cassiopeia, Cadernos do Meio-Dia ou Notícias do Bloqueio, onde publicou os primeiros poemas em finais dos anos 50, João Rui de Sousa, depois de chegar aos setenta anos, é sem dúvida, um dos poetas e ensaístas mais conscientes dos fenómenos poéticos do segundo modernismo, relevante nos anos 60 da poesia portuguesa, onde a sua pessoal afirmação, como já disse Jorge de Sena, "se caracteriza por uma grande arte da metrificação fluente, severidade de expressão irónica, viril secura no manejo das metáforas e um moralismo áspero que nunca se concede a facilidade de protesto retórico".

Na verdade, desde A Hipérbole na Cidade (1960), o percurso poético de João Rui de Sousa tem-se desdobrado entre um deliberado sentido de "desocultação" da palavra, marcada por uma forma de clara intervenção e uma singular denúncia da poética dos anos 60, mas que cedo evoluiu numa depurada expressividade e se manteve coerente com alguns "postulados" que, na sua poética, se revelam como esse "fogo repartido" pelo dizer e calar, pelo murmúrio e protesto, pela fala e silêncio, pela "obstinação" ou "poética" do corpo, pelo auto da dúvida numa espécie de "arte poética" que se divide entre a vida e a morte:

Sim, a morte.
A morte e a vida.
Um rio de cal ou ouro, e a transparência.
A espada intercalar para além dos veios
de mentira ou verdade ou mesmo assombro.
E o raiar possível de uma estrela
entre o olhar e o sonho.

Na forma obstinada de uma nocturnidade poética ou na aparente contradição de um "auto de dúvida", todo o rigor expressivo se maneja numa forma dualista de tudo ter o seu avesso e direito, ser dúvida e certeza, sonho e alegria, em que as suas minudências se decifram pela carga simbólica de um vocabulário preciso e rigoroso. De facto, pelas estações e percursos deste novo livro de João Rui de Sousa, que aparece valorizado com excelentes ilustrações/pinturas de Justino Alves (um pintor que vive há muitos anos em Lisboa sempre com saudades do Porto em que nasceu e se formou), pode percorrer-se por aí os mesmos labirintos de uma coerência poética e formal, sem nítidas alterações estruturais, que denota um "discursivismo" expressivo muito mais elaborado ou, sobretudo, decantado nas falas que nos chegam do fundo do tempo e dos anos, espraiada em "fogos" que nunca são de artifício ou vazios de sentido. E assim o "discurso" pelos próprios "nocturnos da escrita" ou ainda sobre o corpo que nunca está ausente desse "cosmos", se descreve numa subtileza expressiva e na cadência de imagens e de ritmos sempre comoventes:

Quem, em escrita descida,
só de si mesmo padece
- em temor, em voz ouvida
só nos nocturnos da escrita,
só ao redor do que desce?

Integrado na corrente "realista" dos anos 60, que tentou valorizar a expressão poética como atitude de diálogo e de combate, João Rui de Sousa mantém-se firme nesse caminho apontado desde os primeiros livros, como em Habitação dos Dias (1962) e Corpo Terrestre (1972), ou nos últimos livros como Enquanto a Noite, a Folhagem (1991) ou Obstinação do Corpo (1997), na força e coragem de estar no seu "reduto" e dele apenas sair para fazer outros"percursos"ou sentir o peso da mudança das próprias "estações", como quem sabe que a vida se atravessa no calor dos anos e pela comoção e conquista verbal patente em muitos dos seus poemas revelar essa mesma "vocação" poética de saber, no rasto de outros poetas que sempre viveram perto de si, que a viagem ainda não acabou, o verbo se faz carne e sangue do mesmo "corpo" e uma idêntica "circulação" poética atravessa as mesmas veredas e caminhos, como no poema final deste livro:

Assim, partindo sempre junto à água,
junto aos mansos salgueiros que das margens
sinalizam luar e terra firme
e amadurecem vozes libertadas,
é que floresço em sílabas na praia
e nado no sem-fim do que desbravo.

Por isso, na leitura deste novo livro de João Rui de Sousa, sabemos estar na companhia de um poeta de grande qualidade e, como refere Teresa Rita Lopes no seu prefácio, "poder-se-ia dizer que o Poeta é um clássico pelo assumido rigor da sua escrita e porque os seus versos são trabalhados à bigorna". Mas, na leitura de Os Percursos, as Estações, repetimos estar de facto perante um poeta que se pode ler dentro do nosso próprio silêncio, por fazer nascer ou reviver em nós esse mesmo fluxo/refluxo de sentimentos, entusiasmos, paixões, ódios, raivas, angústias e outros combates. E que no poema mais breve deste livro sabe ainda proclamar:

Administra a tua razão
com um anjo louco.

Serafim Ferreira

 

João Rui de Sousa
OS PERCURSOS, AS ESTAÇÕES
Prefácio de Teresa Rita Lopes
Pinturas de Justino Alves
Publicações Dom Quixote / Lisboa, 2000


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 94
Ano 9, Setembro 2000

Autoria:

Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.
Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.

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