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"Cantina Topo de Gama"

Faço um breve interregno na crítica do fenómeno educativo em favor do aparelho digestivo. Se é imperiosa a denúncia do vazio do discurso pedagógico, não será menor a necessidade da denúncia comezinha do vazio crónico que o desprezo pelo ex-ensino primário produziu no estômago dos catraios. Como diria o outro, não se poderá dissertar sobre pedagogias se escasseiam as calorias...

Malesuada fames

Em plena semana de abertura de mais um ano lectivo, o título de uma notícia de jornal prendeu a minha atenção: "Cantina topo de gama". Esperançoso (como qualquer professor primário) quando li uma referência a refeitórios "com refeições subsidiadas", deixei-me possuir por um breve engano de alma. Cantinas? Em título? Só poderia ser notícia para quem ainda as não tem. Se, o texto acrescentava que "o projecto actual pôs um ponto final no caos", só poderia estar a referir-se ao Primeiro Ciclo do Básico. Os alunos do 1º ciclo iriam (finalmente!) usufruir dos mesmos direitos dos seus colegas do "ensino obrigatório"?
O corpo da notícia era um regalo para os olhos: "caso o estudante queira optar por uma refeição alternativa" (...) "são servidos grelhados numa das divisões decoradas a vermelho-escuro" (...) "depois do almoço, os alunos poderão seguir para o bar" (...) "revestimento em mármore e cadeiras forradas" , etc, etc, etc... A esmola era grande. Compreendi, imediatamente, que não se estava a falar do 1º ciclo do Básico mas de uma Universidade.
Também no capítulo do funcionamento dos refeitórios, ano após ano e apesar das promessas, o 1º ciclo é compelido a uma situação de excepção. Permanece ensanduichado entre uma educação de infância que (nos últimos tempos) já beneficia de algum apoio e os restantes ciclos do Básico, do Secundário e até do Superior.

Os "filhos do Deus menor"

O Decreto-Lei nº 344/99, de 26 de Agosto, abre a possibilidade de as escolas celebrarem contratos e recrutarem pessoal não docente. Este normativo abriria a possibilidade de as escolas do 1º ciclo suprirem carências de pessoal (no caso particular, das cantinas), se a hierarquia não se apressasse a esclarecer (via telefone...) que o decreto não se aplica às escolas do 1º ciclo.
O diploma é claro no seu articulado: "estabelecimentos de educação e ensino não superior na directa dependência do Ministério da Educação podem celebrar contratos administrativos de provimento..." (Artigo 1º) Os posteriores "esclarecimentos" apenas confirmam a marginalidade do 1º ciclo. Mas persistem algumas dúvidas: As escolas do 1º ciclo serão, efectivamente,"estabelecimentos de educação e ensino não superior"? Estarão, efectivamente, "na directa dependência do Ministério da Educação"? Não parece.

Com decretos e despachos...

Um decreto de Outubro de 1952 determinava que o Estado estimularia "a iniciativa privada na fundação e manutenção de cantinas, subsidiando-as na medida da assistência prestada e na acção por elas exercida no aumento e regularização da frequência escolar". Decorridos mais de trinta anos, o Dec-Lei 399-A/84 transferiu para os municípios competências em matéria de acção social escolar, nomeadamente no domínio dos refeitórios. O seu artigo 7º diz-nos que "a gestão dos refeitórios escolares é da responsabilidade das câmaras municipais".
Em 1996, um jornal dava notícia de que determinada câmara municipal se tinha apercebido de que cento e quarenta e seis crianças das escolas do seu concelho sofriam de carências alimentares. Ao cabo de grandes esforços, essa câmara "conseguiu que os restaurantes ajudassem trinta e seis delas". Quanta bondade!...
Um canal de televisão referia no seu serviço de notícias que, num outro concelho, uma cantina estava encerrada por falta de funcionária. O presidente da câmara afirmava que os encargos com pessoal não eram da sua conta; a responsável pela DRE dizia ser encargo da câmara. Em que ficamos?
Em 1984, as antigas cantinas foram extintas e os seus bens, legados e doações passaram para o património dos municípios. Hoje, as câmaras argumentam não poderem suportar os encargos com o pessoal das cantinas. Os responsáveis pela Acção Social Escolar do Ministério da Educação, por seu turno, esteiam posições no articulado de um decreto especialmente dedicado ao primário de 1984. Por que razão não se entrega às câmaras os refeitórios dos outros ciclos, do secundário e... do superior? Porquê só os do primário?

Ensino gratuito para quem?

A Lei de Bases do Sistema Educativo refere que a gratuitidade da escolaridade obrigatória abrange a possibilidade de "dispor gratuitamente de (...) alimentação" (nº 5 do artigo 6º) e o Dec-Lei 35/90, de 25 de Janeiro, consagra o princípio da "gratuitidade da escolaridade obrigatória". Na alínea b) do seu artigo 10º, estabelece "o apoio a prestar em matéria de alimentação (...) a atribuição de refeições subsidiadas ou gratuitas". Refeições subsidiadas ou gratuitas para quem?
O Parecer nº 1/89 do Conselho Nacional de Educação denunciava "a discriminação" "ilegítima face à Constituição" em que o projecto do referido Decreto-Lei incorria relativamente à "exclusão (...) dos alunos dos estabelecimentos particulares e cooperativos". Foi justa e oportuna a denuncia da discriminação dos alunos do "ensino particular". Mas alguém se lembrou dos alunos do "primário oficial"?
O referido Parecer do CNE era perentório na rejeição do "argumento, por vezes invocado, da escassez dos meios do Estado", no que estava em sintonia com o aforismo popular que nos diz que "ou comem todos, ou não há moralidade". Porém, porque os aforismos não são a sua especialidade, ou porque não terá lido o Parecer que encomendou, o Estado não se comoveu.
O CNE bem insistia na tese de que, se o argumento da "escassez" merecesse aceitação, "só poderia conduzir à repartição por todos os cidadãos igualmente das restrições que houvesse que impor"! Os alunos-cidadãos do primeiro dos ciclos ficaram com o exclusivo das restrições...
Na sua redacção definitiva, o normativo era claro na definição do âmbito da sua aplicação: "o presente diploma aplica-se aos alunos que frequentam o ensino não-superior em estabelecimentos de ensino oficial (...)". Mas era mentira. No seu artigo 6º atribuía "prioridade ao ensino básico (...)". Mentia mais uma vez.
O Despacho Conjunto 48/SEAE/SEEI/96 disserta sobre "igualdade de oportunidades de acesso e sucesso educativo dos alunos", e "imperativos de equidade e de justiça social". Igualdade e justiça social para quem?
Outro despacho conjunto (59/SEAE/SEEI/96), por seu turno, recorda no ponto 1.2.1., que "o fornecimento de refeições escolares visa assegurar uma alimentação equilibrada e adequada às necessidades da população escolar, segundo os princípios dietéticos preconizados pelas normas gerais de alimentação definidos pelo Ministério da Educação". Alimentação equilibrada? Princípios dietéticos? E onde estão as refeições?

A bem da nação

Os pais dos alunos da minha escola têm andado numa roda-viva entre a câmara e o centro de emprego. O contrato com as tarefeiras que confeccionavam alimento para os seus filhos cessou. O ano lectivo está a começar e os putos não podem passar sem comer. A câmara não colabora, o financiamento é igual a zero, a escola ainda não dispõe de orçamento, o centro de emprego demora na resposta, o CAE diz que não é nada com ele.
Mas, como já está habituada ao risco e calejada na precariedade, a Associação de Pais tudo há-de resolver, a bem da nação. A cantina há-de voltar a funcionar e as remunerações das cozinheiras continuarão a ser asseguradas pela contribuição (dupla) dos encarregados de educação, a bem da nação.
Ainda haverá quem não acredite em milagres?

José Pacheco
Escola da Ponte/Vila das Aves


  
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Edição:

N.º 84
Ano 8, Outubro 1999

Autoria:

José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves
José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves

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