O objectivo do meu texto é cruzar duas dimensões que coexistem quando se fala de Educação, ainda que por vezes não se tenha consciência disso: a dimensão do ensino e a dimensão da ciência. Os modelos científicos em vigor, acabam por se reflectir sempre nas práticas escolares, nas pedagogias dominantes, na educação. Falar de Ciência e Educação para um período tão grande - o século XX -, é complexo. Assim, para não pecar por superficialidade quase obrigatória, prefiro correr o risco de tentar um exercício que espero aprofundar em breve: correlacionar os paradigmas científicos com os paradigmas pedagógicos. O meu pecado será talvez o de excesso de globalidade. Perdoai-me. É sabido que o século XX foi praticamente dominado pelo paradigma cartesiano do primado da razão. Do elogio da razão e da crítica da emoção. Somos todos filhos dessa escola criada por Descartes, à volta da dúvida metódica e do primado racionalista. Viveu entre 1596 e 1650 mas as suas ideias mantiveram-se praticamente intocáveis e de pé, até quase ao século XXI. Foi com ele que aprendemos o que era a ciência, o método científico (no singular) a objectividade. Foi esse Discurso do Método que marcou a ciência deste século e também a pedagogia escolar e a educação em geral. Aprendemos a pensar com a cabeça e não com o coração; desumanizámos, desantropomorfizámos a ciência e tal teve também efeitos directos na educação, essencialmente durante toda a primeira metade do século, sempre com excepções, claro. Ensinou-se a ler contar e escrever - educação essencialmente racionalista, cognitivista. Não era importante a educação dos sentidos, o pensar as emoções, o afecto entre docente e discente; a relação. O importante era o produto, o aluno instruído, não o processo de levar a aprender, de educar, verdadeiramente. Era a directividade versus a actividade do aluno passível de ser tornado sujeito da sua própria aprendizagem. Claro que aqui e ali sempre foram surgindo os dissidentes que propuseram as pedagogias activas versus o magister dixit . Arrumámos também assim o mundo duma forma muito dualista: Razão/emoção; racional/irracional; instruído/analfabeto; etc. E assim continuamos a pensar, ainda, por vezes, hoje. Surgem já diversos trabalhos a mostrar a importância das emoções na memória, na relação humana, na inteligência, na aprendizagem, etc. mas continuamos filhos de Descartes porque continuamos a dividir o conhecimento a preto e branco: objectivo/ subjectivo. Recuemos um pouco para percebermos o contexto que permite que a obra de Descartes se torne directora da ciência e da educação até quase ao século XXI. Para o pensamento medieval, a realidade que nos cerca e de que tomamos conhecimento pelos sentidos, era inquestionável quanto à sua existência. Era um realismo que partia essencialmente do postulado dogmático de que essa realidade existia fora de nós. Para o pensamento moderno, que Descartes inaugura e que vigora em todo o século XX, a realidade exterior a nós próprios passa a ser questionada e problematizada. Descartes recomenda que se reconheça a realidade como objectiva não porque "os sentidos a percebam ou a inteligência a contemple, mas porque a razão a garante" (Newton de Macedo, 1938: XXII). Só é real o que é racional, e o que é sensorial não é racional, logo, não é real. É este o primado da Razão que afasta a emoção dos paradigmas científicos e educacionais fortemente durante o século XX. É o "penso logo existo" que impera na ciência e na escola. O "sinto, logo existo", esse é um risco que só agora os cientistas assumem e os educadores consideram como fundamental à prática pedagógica. "E, como só é real o que é racional, o universo cartesiano aparece muito diferente do universo sensível, despojado de todas as outras propriedades que atribuímos às cousas, mais rico em riqueza conceptual, mais pobre porém em riqueza qualitativa. É o mecanismo cartesiano nascido dessa imperiosa necessidade de ver claro, com os olhos da Razão" (Newton de Macedo, 1938: XXIII). António Damásio, Prémio Pessoa, autor de "O Erro de Descartes", legitima em 1995, de alguma forma, transnacionalmente e transdisciplinarmente, aquilo que já muitos cientistas sociais vinham dizendo: que a emoção e a razão não funcionam isoladamente. Mas Damásio, vindo duma área científica mais dura, mais credível aos olhos racionalistas, explicitou por escrito com argumentos da sua pesquisa nos Estados Unidos, que "certos aspectos do processo da emoção e do sentimento são indispensáveis para a racionalidade" (Damásio, 1995: 14). Também ele próprio diz que foi advertido muito cedo para decidir sensatamente e que isso implicaria uma cabeça fria; foi ensinado para pensar que as emoções e a razão se misturam tanto quanto a água e o azeite. É neste contexto de racionalidade que as Ciências da Educação se reivindicam como tal. Como Ciências. O modelo epistemológico é o das ciências da Natureza. O da objectividade do Sujeito que investiga, que está deveras distante do objecto investigado; não habitam o mesmo mundo. Não dialogam. O objecto é mudo. O aluno, esse, é tido como tábua rasa. Como cabeça a encher mais que a arrumar. A pedagogia, se é que existia no início do século, era também fria, em nome da objectividade e da racionalidade. As Ciências da Educação são assim, a meu ver, no seu início, mais filhas das ciências experimentais e naturais do que das próprias ciências humanas e sociais. De resto, também estas buscavam para si o estatuto de ciências, procurando generalizar o por vezes não generalizável; procurando leis onde impera a especificidade e a idiossincrasia do humano. Então, o positivismo do século XIX e início do século XX, que marca as Ciências Sociais e as Ciências da Educação, que se recusam a ser subjectivas, a serem simplesmente humanas, e, logo, não científicas, vigorou na ciência e na educação. Essa distância, esse não diálogo entre quem ensina e quem é ensinado, entre mestre e aprendiz, é a meu ver, similar ao modelo unidireccional do investigador que crê poder explicar o seu objecto de estudo apenas de fora, sem dialogar com ele, sem interagir com ele - o modelo das ciências da natureza. Em Portugal, contudo, após 1910, com a implantação da República, e portanto ainda no início do século, a educação recebe um carácter humanístico que acabou por perder no regime implantado pelo golpe de estado de 1926. Não é que o sistema educativo do Estado Novo não se tenha preocupado com a formação de professores. Fê-lo foi excessivamente com uma visão tecnicista e didáctica - positivista. É neste contexto também de medição e quantificação, de busca mais das regularidades - leis - muito mais do que dos casos únicos - as excepções, que surge também no mundo da educação o QI (quociente intelectual). A noção aparece no início do século, em 1912, proposta por W. Stern, depois de em Paris, A. Binet e T. Simon, apresentarem a primeira escala métrica de medida de inteligência. O objectivo era despistar as crianças incapazes de seguirem o ensino primário, de modo a enviá-los para classes especiais. Se repararmos, implementava-se assim uma pedagogia da exclusão, ao contrário da que caiu em moda falar no final de século - pedagogias inclusivas. E tudo isto, creio, em nome da racionalidade. Das performances cognitivas. Estávamos longe de discutir a importância da Formação Pessoal e Social a Educação para a cidadania, para o pluralismo cultural. Estávamos longe de pensar sequer que a convivência e interacção entre esses dois tipos de crianças, estigmatizados a partir da famosa escala de Binet-Simon, era enriquecedora e benéfica para ambos. Estávamos longe de pensar que mais para o final do século se iria dizer que esses teste são subjectivos na medida em que são socialmente condicionados e/ou deturpados. "Se têm um valor de prognóstico é porque avaliam o domínio da linguagem e a lógica matemática, sobre os quais recaem também os exames escolares [...]. Resultado, a inteligência tornou-se a capacidade de responder a um teste verbal e lógico-matemático" (Filliozat, Isabelle, 1997). Em 1983, num obra chamada Frames of Mind, Howard Gardner fala pela primeira vez em inteligências múltiplas e choca muitos especialistas mas apaixona também muita gente. Começa a falar-se de inteligência do coração, de inteligência das relações sociais, etc., que deveriam ser colocadas ao mesmo nível das outras formas de inteligência. É, enfim, o começo do legitimar no Ocidente de outras formas de racionalidade. Desde Descartes que o dualismo era Racional/Irracional. O modelo científico e escolar era dualista. A preto e branco. Digo no Ocidente, porque no Oriente, por exemplo no Budismo, desde há 2500 anos que se desenvolvem as utensilagens da autoconsciência. Da hermenêutica. Do entender o entendimento. Algo considerado herege pela ciência Moderna Europeia. Ao reinado do QI parece querer suceder no trono o QE (quociente emocional). "O antigo paradigma baseava-se no ideal de uma razão liberta da pressão da emoção. O novo paradigma convida-nos a harmonizar a cabeça com o coração. Devemos compreender mais precisamente o que significa: utilizar a emoção inteligentemente" (Goleman in Filliozat, 1997: 12). O modelo dualista também haveria de ter reflexos na academia. Por um lado, andámos um século a dividir o saber em conhecimento científico versus humanidades. Ou, de uma forma ainda mais simplista, em Ciências e Letras. Apesar do empenho colocado em tanta taxionomia disciplinar por tanto teórico. Mas o povo, a escola, os professores, os alunos, esses continuam ainda com esse modelo bipolar das Ciências e das Letras. Produtos de sucesso da obra de Descartes. "Até finais do século XIX, os físicos ainda publicavam os seus artigos em revistas cujo título incluía a palavra "filosofia". Os literatos autoproclamavam-se a "classe culta", menosprezando a ciência que eram incapazes de compreender. Se bem que alguns cientistas continuassem a escrever para o público em geral, os seus livros eram pura e simplesmente ignorados por esta elite. A situação, que se manteve durante o nosso século, teve como um dos principais apóstolos, C.P. Snow, o autor de As Duas Culturas, que sublinhava a distinção entre intelectuais e cientistas. Depressa se verificou, porém, que uma educação baseada apenas nas ideias de Freud, de Marx ou do modernismo era insuficiente. Tornou-se, pois, necessário aceitar o aparecimento de uma "terceira cultura", que superava o fosso de comunicação entre homens de letras e de ciências" (Brockman, 1998: contracapa). Essa terceira cultura, será talvez a que cada cidadão do próximo século terá de dominar; que a escola terá que ensinar: um homem íntegro capaz de comunicar, pensar e agir dentro de esquemas que classicamente foram considerados opostos. Ricardo Vieira Escola Superior de Educação de Leiria Bibliografia usada - BROCKMAN, John (1998) (Org.). A Terceira Cultura, Lisboa: Temas e Debates.
- DAMÁSIO, António (1995). O Erro de Descartes, Lisboa: Pub. Europa-América.
- FILLIOZAT, Isabelle (1997). A inteligência do coração, Lisboa: Editora Pergaminho.
- MACEDO, Newton (1938). "Prefácio ao Discurso do Método", in DESCARTES, Renato, Discurso do Método, Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora.
- NÓVOA, António (1990). "Os professores: Quem são? Donde Vêm? Para onde vão?" in
- STOER, Stephen, Educação, Ciências Sociais e Realidade Portuguesa, Porto: Afrontamento.
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