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Ser Polícia Também Cansa

O Diogo tem 8 anos. Quando era mais novito, os primos graúdos vaticinavam-lhe um futuro dado a intelectualidades. É que o puto gostava de conversar e ouvir histórias; não perdia pitada das conversas dos mais velhos e franzia o sobrolho numa expressão inequivocamente reflexiva.
No entanto, parece que ele quer ser veterinário. Ou melhor: querer-querer, ainda não sabe muito bem o que é que quer, mas, se tivesse de escolher já, "escolhia ser veterinário" - "porque gosto muito de animais", sobretudo de cães.
O Diogo está no 3º ano e, obviamente, já sabe ler, escrever e "fazer as contas todas". Do que mais gosta é de Estudo do Meio - "porque é o que sei mais" -, embora, curiosamente, não se lembre da última coisa que aprendeu, porque foram as férias do Carnaval e "na aula de hoje não falei de nada; só falei de Matemática". O que, a bem dizer, não constitui problema, uma vez que, a seguir a Estudo do Meio, o que mais gosta é de Matemática. Por isso, não é de espantar que já saiba fazer as contas todas. Somar? "Já!". Subtrair? "Já!". Multiplicar e dividir? "Já!".
Tirando Estudo do Meio, Matemática e Língua Portuguesa, o que o Diogo mais gosta de fazer na escola é correr, com os amigos. A propósito, a turma dele não é grande - "só somos 21".
Uma coisa está bem certa na cabeça do nosso rapaz - ele anda a estudar "para ter um bom emprego e para ser bom estudante". Por falar em emprego, a mãe do Diogo "trabalha no escritório da Brisa". Para quem não saiba, trata-se de uma coisa que, "quando há incêndios ou acidentes na autoestrada, vai lá a carrinha rebocar os carros". No escritório, a Anabela "trabalha no computador, recebe mensagens e tira fotocópias de muita coisa".
O pai do Diogo é o Paulo. "É polícia judicial". Ou seja, "trabalha no computador, vai atrás dos bandidos, faz investigações...".
O que é isso de investigações? "É investigar as coisas". E na escola dele também se investigam coisas? "Não!". O que é pena, porque o Diogo sorriu de satisfação quando falou em investigar as coisas. Mas adiante...
Que mais faz o Paulo no trabalho? "Não sei mais", embora tenha a impressão de que a profissão do pai é "mais ou menos" interessante e de que o Paulo gosta da profissão que tem. Uma ideia que lhe advém da circunstância de o pai falar com ele sobre as coisas que faz no trabalho. Conta-lhe histórias? "Histórias, não".
O Diogo tem um hábito curioso. "Quando o meu pai me vai buscar de carro, ao infantário ou ao treino, pergunto-lhe se levou algum bandido, para não me sentar nesse sítio" - "pergunto-lhe isso porque, se calhar, já trouxe bandidos". E porque é que o Diogo não se senta no lugar dos bandidos? "Porque fica tudo porco".
O Diogo sabe do que fala, porque o pai já prendeu muitos bandidos. "Até uma criança que roubou muitos carros". O Paulo prendeu uma criança que roubou muitos carros? "Sim, ainda hoje falou nele". E o que é lhe fez, puxou-lhe as orelhas? "Não". Então? "Vai a tribunal". De facto, quando o Paulo descobre os bandidos, "fala com eles e, depois, ou vão no dia seguinte ao tribunal, ou vão nesse dia". E até irem ao tribunal, onde é que eles ficam? "Ficam presos".
Dito isto, o Diogo gostava "mais ou menos" de ser polícia - mais ou menos, "porque é muito cansativo", tanto quanto ele se apercebe pelo pai: "às vezes, trabalha até às 5 da noite; às vezes, só vem às 7 da manhã; outras vezes, vem às 7 da tarde"; e ao fim-de-semana, "às vezes" também trabalha.
Agora o que o Diogo gostava mesmo era de aprender a trabalhar no computador, como sabe que a mãe e o pai trabalham. Mas, infelizmente, não é possível - "há um na minha sala, mas está avariado"...
É por estas e outras que o pai do Diogo acha que a Escola não responde às expectativas das crianças. "Em vez de ser um espaço de aprendizagem, de actividades interessantes e de descoberta, tudo se passa ao contrário. Parece que, ao fim e ao cabo, os miúdos estão a retroceder em relação ao que lhes é proporcionado em casa - se os pais lhes pudessem dar, em casa, um apoio mais sólido, estou convencido de que eles conseguiam aprender mais do que na escola". Vai mais longe e opina que "a Escola parou no tempo"; que, "em vez de ser vanguarda, está na rectaguarda"; que os alunos consideram que "a escola é uma seca".
Por outro lado, o Paulo acredita que as crianças "deviam aprender as coisas com muito mais facilidade do que nós, porque chegam à escola muito mais evoluídas do que no nosso tempo [o Paulo tem 35 anos]; nós íamos para a escola de olhos fechados, mas parece-me que conseguíamos interiorizar muito mais do que hoje em dia". Isto, apesar de também lhe parecer que, "em termos científicos, se assim se pode dizer, as crianças são mais evoluídas e avançam muito mais depressa; mas, em contrapartida, retrocedeu-se em termos de conhecimentos gerais".
A pensar assim, e se tivesse oportunidade de mandar, o que é que o Paulo mudaria na escola pública que os filhos frequentam?
"Contra mim falo, porque, infelizmente, não tenho podido acompanhar de perto a vida escolar dos meus miúdos, mas acho que devia haver um princípio fundamental - o professor devia iniciar o ensino primário de uma criança e acompanhá-la até ao 4º ano. Por outro lado, não me parece muito bem que as crianças que não passam de ano se mantenham com o mesmo professor e os mesmos colegas que, entretanto, avançaram de ano. Acho que é prejudicial quer para os que avançam, porque têm de marcar passo enquanto o professor atende os outros, quer para os que ficam retidos, porque compreendem que estão atrasados em relação aos colegas. Por isso, e por muito que me custe ver crianças ficarem para trás, acho que seria preferível haver em cada sala apanas alunos de um só ano de escolaridade".
Relativamente à disciplina, o Paulo sente que antigamente se batia por dá-cá-aquela-pallha - "as crianças apanhavam grandes tareias" - e que, agora, se peca por defeito. "Vê-se que os miúdos se portam mal e que os professores não querem saber; não têm coragem para lhes aplicar um correctivo, nem chamam os pais à escola para os alertarem sobre as dificuldades e problemas dos filhos. Parece-me que os professores se preocupam pouco com a evolução, ou não-evolução, de cada aluno".
E para terminar: "Se nas famílias há cada vez menos tempo para transmitir os valores que nos devem reger a todos, na escola parece que isto também passa ao lado, apesar de os professores estarem muito tempo com as crianças. Não sei se é porque os programas são vastos e não dá para lá chegar, se são as pessoas que se desinteressam ou se, realmente, se trata de uma perda de valores a todo o nível. Não sei...".

António Baldaia


  
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Edição:

N.º 78
Ano 8, Março 1999

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