Página  >  Edições  >  N.º 160  >  «Um dia, eu simplesmente apareci»(1)

«Um dia, eu simplesmente apareci»(1)

«Um dia, eu  simplesmente apareci.»
Assim era como o artista plástico Arthur Bispo do Rosário respondia a quem perguntava pela sua origem.
Mas, quando foi que começou essa guerra actual?
Ex-marinheiro e lutador, viveu mais de 50 anos em manicómios e negava-se a falar sobre a sua família, raízes e culturas.
Segundo a sua visão, ele era filho de Deus, tinha sido adoptado pela Virgem Maria e aparecido no mundo ao o seu colo. Dizia: «Eu já  fui transparente. Algumas vezes, quando deixo de trabalhar, torno-me transparente de novo. Normalmente,  estou cheio de cores».
Dizem que Bispo nasceu em Sergipe, nordeste brasileiro, pobre e negro, esquizofrénico. Louco. 
Quem  mora nesse mundo que agora está em guerra?
Natal de 1938, Bispo saiu da sua casa rumo a um passeio pela vida. Ordens sagradas vindas de longe deram-lhe esse estimulo.
Será que já estávamos ameaçados? Ou, Será que a ameaça nasceu com Bispo?
Naquele Verão, Bispo entrou  no ?Hospital dos Alienados da Praia Vermelha? do Rio de Janeiro, primeiro manicómio oficial do Brasil. Menos de um mês depois, foi transferido para a ?Colónia Juliano Moreira?. Tinha 27 anos, morreria, 53 anos depois, na mesma Colónia. Durante todo o tempo em que viveu a sua vida cumpriu a tarefa que,  sagradamente, lhe foi encomendada.
Agulha e fios foram os instrumentos que utilizou para obedecer à voz que mandava reconstruir o mundo. Bordou toda a sua vida, suas observações e verdades.  Bordando nos bordes o desborde da tranquilidade e o abraço da  vertigem.
Não quero freios para essa loucura. Para além da dor. Para além que o perigo, agora, também seja eu. 
Shshshshshssh!!!!!!!!!! Bispo não pede que alguém frei essa loucura? tem muita gente querendo dizer que esse algo pode ser «Bush!!!!!»
Desfiando o uniforme azul dos internos da Colónia armou-se de fios.  Com farrapos, criou mantos e estandartes, e,  nesse universo tão singular narrou a sua experiência no próprio coro. Não pretendia somar ninguém à sua quixotesca empresa.
Parece que Bispo nasceu em Japaratuba. Nordeste. Terra de cangaceiros,  meninos-machos e narradores.  Terras religiosas, movidas por procissões e festas cristãs,  ao som do forró.
Bispo levava o sobrenome da ordem que evangelizou a sua família de negros escravos: a ordem do Rosário.   Dizem que cresceu no meio de mandamentos, rosários, pecados e culpas, e que os driblou como louco, escrevendo com fios, dizendo com agulhas... contando.  
Dizem que era moralista, cheio de normas de bom comportamento, embora também dizem que era doido pelas nádegas de qualquer Miss nórdica. Eh! O  terrorismo não tem fronteiras.
Preparou-se durante toda a vida para se apresentar ante Deus no dia da sua passagem. Pretendia ser santificado e chegou a assinar as suas obras como  ?Arthur Jesus?, e a declarar-se  «rei entre os reis».
Eu teria gostado da leitura do seu coro. Talvez, até teria acreditado.
Em Julho de 1989, com 80 anos, vestindo o seu «Manto da Apresentação», uma das suas obras mais famosas, onde bordara inumeráveis nomes de todos os seres que conhecia e,   deitado na sua cama-nave, seu transporte para o além, viveu a sua profética passagem: «Quando eu suba, os céus se abrirão e,   recomeçará a contagem do mundo.  Vou nessa nave, com  esse manto e essas miniaturas, que são minha existência. Vou-me apresentar».

Foto e saber mais de Arthur Bispo do Rosário : http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?pid=S0009-7252003000400032&script=sci_arttext

Nota:
1) Intervenção realizada a partir de uma troca no Fórum do Curso virtual «Experiencia y Alteridad en Educación». Flacso/ Argentina, Agosto de 2006;


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 160
Ano 15, Outubro 2006

Autoria:

Anelice Ribetto
Psicóloga (UNC- Argentina)
Mestre em educação (UFF- Brasil)
Anelice Ribetto
Psicóloga (UNC- Argentina)
Mestre em educação (UFF- Brasil)

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo