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Em busca do ritmo perdido (II)

O Egídio era um professor ?à moda antiga?, como gostava de afirmar. Era, digo eu, pois deixou de ser. De renitente, o Egídio passou a crente.
- Isso do ritmo é tudo treta! ? troçava o Egídio ? O conceito nem consta das sebentas!
É preciso que, em abono da verdade, se diga que foram muitas as tentativas que fiz para o convencer da justeza das minhas convicções. Argumentei com a evidência do biorritmo, recorri a estratégias de persuasão de êxito assegurado em casos afins. De nada me valeram as estratégias? Em desespero de causa, dei-lhe a ler uma carta que, há alguns anos, um jovem professor enviou aos responsáveis pela direcção da sua escola. O Egídio saltou parágrafos, mas ainda se dignou deitar-lhe uns olhitos: ?A nossa escola pretende regular a entrada e saída das aulas através de toques de campainha, numa tentativa de responsabilizar os alunos pelo cumprimento do horário. Na minha opinião, é uma medida que tem precisamente efeito contrário, ou seja, desresponsabiliza os alunos. O ser humano ?programado? para executar uma tarefa é automaticamente desresponsabilizado pela mesma, porque a cumpre por receio das consequências. O ser humano que temos na nossa escola ouve o toque, vai para a sala, não porque pensa que deve ir, mas porque corre o risco de levar uma falta de atraso, ou vai simplesmente por ir. Se esta podia ser já uma razão para acabar com os toques, outra maior emerge. Se observarmos cuidadosamente o momento em que ?toca para dentro?, vemos uma série de alunos imediatamente a abandonarem o que faziam, para se dirigirem para a sala, como se fossem robôs! Os toques de campainha representam um grande contra-senso. Com esta carta pretendo sugerir ao conselho executivo o seu abandono. Para tal ser possível, a escola necessitaria de instalar relógios. E, na semana anterior ao abandono dos toques, as turmas precisariam de ser avisadas, e explicada a mudança (?)?.
O Egídio deitou à carta um olhar de desdém e não se deu por convencido:
- E depois? O que aconteceu?
Respondi a verdade. Que o autor da missiva teve de dar o dito por não dito e de explicar perante os seus superiores hierárquicos que a carta tinha sido? ?uma brincadeira?.
- Uma brincadeira de muito mau gosto, como deve reconhecer, caro colega! ? admoestaram-no os irritados superiores.
- Queiram? por favor? desculpar ? gaguejou o ?brincalhão?. E por ali se ficou.
Reconheço que tanto o Egídio, como os superiores hierárquicos de então, não agia desse modo por mero acaso. No curso que os habilitara para o exercício da profissão tinham-lhes ensinado a ensinar pela cartilha dos avós. Nunca ninguém ensinara os professores a fazer perguntas.
A prática pedagógica do professor Egídio poderia não diferir das práticas de milhares de seus colegas de profissão, mas não seria ? acreditava eu ? por escassez de tentativas de actualização. O Egídio não falhava um seminário, um colóquio, um congresso, que, no tempo em que o virtual ainda não ganhara hegemonia, eram eventos na moda, através dos quais se supunha os professores aprenderiam algo que lhes permitisse escapar à lógica da reprodução. Tese errada, como mais tarde viriam a concluir os estudiosos da matéria.
Empiricamente, obtive a prova do que os pesquisadores confirmariam muitos anos depois. O Egídio, adepto confesso da imposição de cadências uniformizadoras ? que as escolas do seu tempo impunham a diferentes, únicos e irrepetíveis seres ?, tomou consciência da diversidade rítmica quando menos esperava. Como a seguir se verá?
Certo dia, elogiei o Egídio, quando voltava de um congresso:
- Admiro a tua vontade de aprender. E, então? Valeu a pena?
- Valeu, pois! Mas só até meio, que eu tive de me vir embora logo depois do intervalo.
- Ora explica lá!...
E o Egídio lá explicou.
No coffee-break (como era costume designar os intervalos dos congressos), o Egídio careceu de satisfazer uma das mais elementares necessidades fisiológicas. Dirigiu-se ao WC. Empurrou a porta. A célula fotoeléctrica funcionou na perfeição. O controlo automático disparou. Fez-se luz.
O Egídio foi até ao fundo do corredor. Desapertou a braguilha. Encostou-se ao mictório. Aliviou-se, ou melhor e para não fugir à verdade, deu início à aliviação. Para não sair a meio da palestra, a contenção urinária havia sido longa. As águas a verter eram mais que muitas.
Subitamente, a luz foi-se. Sem deter a micção, o Egídio ergueu um braço e acenou, voltou a acenar e? nada. O WC manteve-se imerso na mais profunda escuridão.
Ao trocar de mãos, para acenar com o outro braço, escapou-se-lhe a coisa, e os urinários fluidos verteram-se, calças abaixo, numa torrente morna, que não tardou a sentir fria e desconfortável até aos sapatos. O Egídio sacudiu-se. Depois, quedou-se, hirto e sofrido. Naquele preparo, empreendeu o regresso, percorrendo o longo corredor às apalpadelas, praguejando de cada vez que introduzia as mãos tacteantes em humidades não-identificadas.
Acabou o périplo encaixado entre dois lavatórios e embatendo frontalmente contra uma traiçoeira parede que as trevas ocultavam. Meio tonto da pancada, continuava a acenar com a sinistra, qual cego prestes a galgar um degrau de escada. Contornou o obstáculo, com a mão direita colada à fronte onde começava a emergir uma dorida protuberância. Ao contornar a fatídica parede, o automático, que estava ajustado para o tempo-padrão de uma urinação normal, disparou novamente. E fez-se luz!
A descrição que o Egídio me fez desta cena acaba com uma imprecação proferida num tal vernáculo, que me vejo obrigado a dispensar o leitor da citação.
Curioso e inteligente como qualquer professor, o nosso Egídio quis saber mais sobre o assunto. Apurou que os toques de campainha tinham sido introduzidos nas escolas do século XIX. Já ninguém se recordava dos objectivos visados pela longínqua introdução desse dispositivo, mas a sineta, manualmente accionada do tempo dos avós dos professores, soava, agora, estridente, a mando de um computador. Sem que alguém, a não ser o inexperiente autor da carta ? e, agora, o nosso Egídio ? ousasse questionar o instituído.
Conclusão a extrair do lamentável e providencial episódio: os caminhos da conscientização são misteriosos e insondáveis.


  
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Edição:

N.º 153
Ano 15, Fevereiro 2006

Autoria:

José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves
José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves

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