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A Girafa

O pequeno Jo (que tinha um ar muito engraçado, porque o cabelo lhe crescia espetado para a frente) tinha dois tios. Eram totalmente diferentes um do outro.
O primeiro tio, mais idoso, vivia numa ruela estreita junto a um convento. Ocupava um quarto amplo  num rés-do-chão. (?Prefiro o rés-do-chão, meu caro senhor?, costumava ele dizer, ?a todas essas ideias modernistas de andares elevados e quejandos?). O seu quarto estava completamente cheio de livros velhos, grossos volumes ocupando estantes meio carcomidas pelo caruncho antes das larvas terem morrido de tédio.
Certa ocasião, estando Jo de visita ao tio, atirou abaixo um destes pesados volumes da estante, que lhe acertou na cabeça, e a mulher a dias do tio teve de correr à farmácia para comprar uma ligadura.
O título deste livro era ?Espírito contra a Matéria?.
O tio de Jo nunca saía do quarto. Passava a vida sentado a uma alta secretária a escrever. Devia ser interessante o que ele escrevia, pois que trabalhava no mesmo assunto há quarenta anos. De qualquer maneira, a matéria deste trabalho era a seguinte: ?Descrição resumida do mundo à priori, ou como seria o mundo se a terra não fosse uma esfera e vice-versa?.
Um dia, Jo perguntou-lhe: ?Tio, como é uma girafa??
O tio não fazia a mínima ideia da aparência deste animal. Desde os vinte anos que não se interessava rigorosamente por mais nada a não ser a sua grande obra, e isto não lhe permitia sair das quatro paredes do seu quarto. Quanto a leituras, para além do já mencionado ?Espírito contra a Matéria?, limitava-se a tratados sobre temas da ideia absoluta, vontade absoluta, idealismo subjectivo do mundo,  transcendentalismo, preconcepção de impressões e solipsismo.
Evidentemente que podem querer saber o que ele fez até aos vinte anos.
Pois bem, até atingir essa idade, a sua única preocupação tinha sido o acne, que continuava a atormentá-lo apesar das horas infindas passadas em frente do espelho. Quanto a visitas ao jardim zoológico, nunca as fizera, temendo presenciar o comportamento imodesto das animais.
Assim, a pergunta do sobrinho apanhara-o de surpresa, embora não deixasse transparecer. Porque, pensando bem, ele não se considerava agnóstico, mas um puro metafísico. Através de toda a sua vida de estudioso, tinha alcançado a certeza de que a soma total de conhecimentos sobre o universo fora revelada ao homem aprioristicamente. Nestas circunstâncias, o conhecimento da aparência duma girafa não passava de mero pormenor.
?Passa por cá amanhã, que eu digo-te?.
Depois de Jo ter saído, o tio correu as cortinas, acendeu uma vela e colocou um crânio humano sobre a secretária. Metade da noite, passou-a prostrado no chão, e o resto do tempo estudando.
No dia seguinte, Jo voltou na esperança de uma resposta.
?Querias saber como é uma girafa?, começou por dizer o tio. ?Pois bem, uma girafa é um animal com três pernas, na cabeça tem cornos e a cauda é como a dum cavalo.  Alimenta-se exclusivamente de fungos com natas. Agora, vai-te embora?.
?E que come no Inverno, quando não há fungos??
?No Inverno, come cogumelos em lata.?
Jo agadeceu ao tio e saiu. Tivera sempre certo receio deste tio e olhava-o com grande respeito. Não estava, porém, absolutamente satisfeito com a informação que lhe tinha sido prestada. De certa maneira, o problema da girafa não parecia ter sido resolvido de forma satisfatória. Especialmente no que dizia respeito aos fungos.
Decidiu ir perguntar ao outro tio.
Tal como acontece em muitas famílias, não havia qualquer semelhança entre os dois tios. Até fingiam não se conhecer. O segundo tio levava uma vida muito activa como editor de um jornal. Devido a trabalho tão absorvente, nunca se encontrava em casa, e assim Jo telefonou-lhe para o jornal.
?Está tio? Daqui o Jo?.
?Em que te posso ser útil, camarada??
?Queria perguntar ao tio com que se parece uma girafa?.
?Procura em NOTAS PARA CONFERENCISTAS?.
?Já procurei, não vem nada?.
?E no Feuerbach??
?Também não, demo-lo na escola?.
?Então vê no Anti-Duhring?.
?Já vi, não diz nada?.
?Deve dizer?.
?Não diz, não?.
?Impossível! Deve vir no Anti-Duhring. Estás a sonhar!?
E o tio desligou.
Quando era pequeno, da idade de Jo, tinha visto um desenho de uma girafa. Vinha na série ?Animais?, oferta grátis que servia de anúncio a uma firma comercial distribuidora de chicória. O tio fazia, assim, uma certa ideia do que era uma girafa, mas, porque o seu conhecimento datava dos tempos capitalistas de antes da guerra, tinha relutância em admitir tal facto.Deu ordens para não ser incomodado e começou a investigar na sua biblioteca marxista. Em breve descobria que o Jo tinha razão. A palavra girafa não era mencionada em Ludwig Feuerbach no Crepúsculo da Filosofia Clássica Alemã nem no Anti-Duhring nem mesmo n?O Capital. Tal palavra não aparecia em nenhuma destas obras.
Outras investigações não foram melhor sucedidas, e o editor achou-se então num dilema.
Deveria admitir que os seus conhecimentos derivavam dos anúncios da chicória? Não. Nunca. Uma confissão dessas colocá-lo-ia a nível inferior aos milhares de pessoas que antes da guerra não tinham sequer posses para comprar chicória.
Deveria, então, confessar que não fazia ideia do que era uma girafa? Isso, também não. Como era possível? E a sua reputação? Não tinha ele perfilhado de alma e coração a tese da perceptividade do mundo objectivo e, consequentemente, não tinha ele dado a impressão de saber tudo? Mesmo que ignorasse alguma coisa, não o podia admitir.
Restava-lhe a possibilidade de procurar ?girafa? num manual de zoologia. E foi isto que fez, sem mais hesitações. Tal coisa, considerava ele, levava inevitavelmente ao marasmo da ciência objectivista.
Quando Jo telefonou de novo, a inquirir sobre a girafa, recebeu uma resposta brusca: ?Não existe tal coisa. Se quiseres, posso descrever-te um cão ou um coelho?.
?Então a girafa? por que razão diz não existir??
?Porque não. Nem Marx nem Engels nem nenhum dos grandes pensadores seus continuadores fazem referências a girafas. Isto significa que não existem girafas?.
?Mas??
?Não há mas, nem meio mas. Já te disse??
Jo pousou o auscultador e suspirou fundo. Depois foi consultar um jovem, chefe do seu grupo de escuteiros.
O chefe do seu grupo era um jovem normal. ?Não tens preocupações maiores?? perguntou. ?Então espera até domingo. Vamos ao jardim zoológico, e logo se vê?.
E foram. E viram a girafa. E discutiram-na. Jo agradeceu ao chefe de grupo e foi para casa muito pensativo.
Pelo caminho vendeu a mala da escola, entrou numa florista e numa papelaria.
No dia seguinte, ao meio-dia, um moço de recados foi ao escritório do editor entregar um ramo de rosas e a seguinte carta:
?Meu querido irmão:
Porque nunca me vens ver? Podíamos conversar sobre a nossa adolescência, sobre a família, sobre o Jo e girafas?
Que Deus te abençoe teu irmão dedicado?.
O primeiro tio, que depois da visita de Jo tinha recomeçado a sua ?opus magnum?, encontrou um rato morto no tinteiro.
Rapazes pequenos raramente têm dinheiro que chegue para dois ramos de rosas.

O Elefante, Mrozeck, editorial Estampa.

  
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Edição:

N.º 121
Ano 12, Março 2003

Autoria:

Mrozeck
Escritor
Mrozeck
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