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As Fantasias da Senhora Vereadora

As relações entre a política e o desporto nem sempre são as mais claras. E ao nível do poder local essa cumplicidade pode chegar a exemplos nada dignificantes, como se pode constatar pela história a seguir contada.

45 mil contos, foi o valor do subsídio. A senhora vereadora, estava excitadíssima porque os jornais, aproveitando as potencialidades do efeito de anúncio, tinham começado a divulgar, em grandes parangonas, a realização do torneio internacional da cidade.
Tudo aquilo, para ela, era muito mais do que um simples jogo de futebol. Ganhar, ganhar, tanto lhe fazia que fosse uma ou outra equipa. Em matéria de desporto, o seu maior gozo era estar debaixo dos olhares sequiosos de apetite pelas abundantes formas das suas carnes, lançados por alguns milhares de adeptos, quando fosse entregar a taça ao capitão da equipa vencedora. Adorava viver aqueles momentos de envolvimento total, uma espécie de clímax em que os seus fantasmas se misturavam numa amálgama de sensualidades estimuladas por corpos bem talhados, a transbordar técnica e violência sadomasoquista que a saciavam nas suas mais doces fantasias oníricas.
Mas nem tudo eram rosas. A Assembleia Municipal estava ao rubro. "Como é que tinha sido possível gastar 45 mil contos num único jogo de futebol, em que os clubes nem se fizeram representar pelas suas equipas principais?" "Resumir-se-ia a política desportiva da câmara, a apoiar o futebol?" "Não havia alternativas?" Outros, mais radicais, berravam a plenos pulmões que a senhora vereadora denotava "um eleitoralismo primário" ao apoiar o futebol.
Mas a representante do povo, não cedia. Neste mundo comandado por homens, em que existe um pequeno "taliban" dentro de cada um deles, a senhora vereadora não tinha pejo nenhum em fazer apelo ao seu português mais vernáculo para blindar os argumentos. "O que é que eram 45 mil contos no orçamento da câmara?" perguntava ela. "O torneio da cidade, embora com um só jogo, não era uma das melhores medidas para promover o desporto entre as crianças e os jovens?" gritava para a oposição. Não entendiam que o futebol representava vantagens para a cidade que não podiam ser menosprezadas? E concluía: "O que o povo gosta é de futebol". "Eu estou ao serviço do povo." E, tal como César, pensava para si: "O meu poder é divertir a multidão."
Os munícipes não se ficavam. As perguntas surgiam de todos os lados. O vernáculo da senhora vereadora já não os amedrontava. Começavam a faltar-lhe argumentos. Na oposição, não se denotava o mais leve sinal de compaixão.
A senhora vereadora, no calor da batalha, percebeu que estava a perder terreno. Era necessário desencadear uma manobra de diversão e contra-atacar. "Aquela chusma de imbecis não a ia deitar a baixo", pensou para si. Em conformidade, idealizou um plano estratégico em tempo real. Embarcou na tendência dos discursos, fez apelo à sua criatividade, e disse: "Há muito tempo que tenho a convicção mais profunda de que é necessário apoiar o desporto escolar." Com uma lágrima a correr-lhe pelo canto do olho, justificou pesarosamente que ela sempre defendera que a câmara municipal devia suportar financeiramente o desporto no 1º ciclo do ensino básico. "Aí sim" dizia, "valia a pena investir pois ao fazê-lo a câmara estava a cuidar do futuro." Ouviram-se alguns aplausos e "muito bens".
Entusiasmada continuou: "Podem crer que a câmara municipal só não aposta inequivocamente por uma política de promoção do desporto no 1º ciclo do ensino básico, devido aos incomportáveis custos financeiros. Perante o peso demolidor de tal argumento, fez-se na assembleia, um silêncio sepulcral. As esperanças num desporto melhor desmoronaram-se. Estaria tudo perdido?
Os munícipes, começavam a evidenciar sinais de capitulação! A senhora vereadora arfava triunfante, embevecida pela sua própria argumentação e orgulhosa da sua estratégia. A rendição incondicional dos opositores afigurava-se-lhe inevitável quando alguém resolveu perguntar qual o custo dum programa de desporto para o 1º ciclo do ensino básico. A senhora vereadora, levantou-se e, solenemente, respondeu: "45 mil contos."


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 113
Ano 11, Junho 2002

Autoria:

Gustavo Pires
Professor na Univ. Técnica de Lisboa
Gustavo Pires
Professor na Univ. Técnica de Lisboa

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