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"A minha escola é uma prostituta"

Na Segunda, à hora do almoço, dei por mim a ver televisão. A filha de Viana de Lemos estava sendo entrevistada e citava nomes de personalidades com os quais o seu pai manteve contacto:

- "... Ferrière, Decroly, Montessori, Freinet...

- Alto! Alto! - atalhou o entrevistador - Não conheço. Nem os telespectadores, certamente, lá em casa! (nem a maioria dos professores, certamente, pensei eu...) E esse tal Freinet? Quem é?

E ela lá explicou que não é, que já era. Explicou o que era a "classe cooperativa", a "imprensa Freinet"...

- Mas isso é muito arrojado! - voltou o Goucha a interromper - Em que altura foi isso?

- O Freinet, nos anos vinte e eu nos anos quarenta - respondeu a professora aposentada, sublinhando que na sua escola de formação (que seria fechada logo após a conclusão do seu curso, em 1936) tinha adquirido conhecimentos que lhe permitiam melhorar a sua prática profissional.

- Mas é extraordinário! - enfatizava o entrevistador - Como se fazia um trabalho tão bom nesse tempo? É preciso ver que o povo estava no obscurantismo.

- Estava e está! - rematou a idosa e sábia mestra.

No Domingo, à noite, o Carlos Cruz conversava com um "fora de série":

- "Diz-me lá: então, as notas? Vão bem?...

- Uma vezes, tenho bom grande; outras vezes, tenho um b pequeno.

- O professor escreve um b pequeno nos trabalhos... é?

- É! - confirmou o "fora de série".

- Estou a ver que as coisas não mudaram muito desde que andei na escola" - rematou o Carlos Cruz

As coisas não mudaram muito na escola?
Escreveu o meu amigo Ademar que "é nas escolas (e nas famílias) que se decide, diariamente, o futuro da humanidade". Perante esta evidência, sobressaltei-me com o desabafo de um jovem professor (que, entretanto, se envolveu na actividade sindical), aquando de uma visita à escola onde trabalhava:

- "A minha escola é uma prostituta!

- Porque dizes isso? - retorqui.

- Porque toda a gente a usa, todos se servem dela, ninguém quer saber dela".

Serão as escolas merecedoras de tão violento epíteto?
Imaginemos que um professor se atreve a sugerir aos colegas o gasto de um tempinho suplementar para procurar solução para aquele problema do 6º F... Logo a maioria responde que tem mais que fazer; outros, que está na hora de ir buscar os filhos ao infantário; safam-se alguns com o pretexto de terem de completar o magro salário; rematam os mais cínicos que, se ao professor proponente sobra tempo, vá para missionário, que não lhe há-de faltar vocação.
Imaginemos que uma escola procura novos e melhores caminhos de aprender. Logo a escola vizinha se lança numa cruzada contra a subversiva congénere. Gestores de escolas em part time (i. é., nas horas vagas do trabalho num gabinete de engenharia ou na actividade paroquial) aliam-se a setores a tempo parcial (i. é, o que sobra das frestas do tempo investido na acumulação no colégio ou centro de explicações), numa feroz campanha de difamação. E o tempo que dizem escassear para "dar o programa" sobra-lhes para urdir intrigas, criticar o que não conhecem ou não entendem, mas que os incomoda, por ser um perigo para o satus quo vigente. Pelo meio, a mole imensa dos que usufruem de um horário com muitos "dias livres" e nem dão pelo fenómeno, os que não se querem incomodar, os que marcam o ponto e vão à vida... Estes são os puros de que é feita a escola.
Mas, como "as coisas não mudaram muito na escola" desde o tempo do Carlos Cruz, até os puros são afectados por sucedâneos de stress e mal-estar docente. Um dador de aulas morre, profissionalmente, aos trinta, mas só é enterrado aos sessenta. Talvez por essa razão, a escassos dias da interrupção de Novembro, era ouvi-la:

- Ainda agora o ano começou e já estou farta, saturada, pelos cabelos! Ainda bem que vem aí mais uma "pausa pedagógica. Já marquei quarto no Algarve."

- "Pausa pedagógica"? - perguntei - não quererás dizer "menopausa pedagógica"? E bem precoce!..."

Apesar das duras evidências, continuo a acreditar nas pessoas dos professores. Poderão chamar-me ingénuo, que não me importo. Que nos valham aqueles a quem a vida ainda não roubou os sonhos, que (apesar de tudo) ainda resistem nas escolas, e os vindouros que nelas hão-de resistir. Através deles, ainda poderemos aspirar a um tempo em que as escolas não possam ser mais comparadas a prostitutas (sem desrespeito por estas profissionais, claro).


  
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Edição:

N.º 110
Ano 11, Março 2002

Autoria:

José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves
José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves

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