Não fumo e não me agrada o cheiro do tabaco. Mas não sou
extremista. Os fumadores não me incomodam se tiverem o mínimo
de respeito pelos outros. Basta que não fumem em sítios demasiado
fechados, que não mandem fumo para cima dos outros e que não segurem
o cigarro virado para fora, prontinho para queimar quem passa. Apesar de já
ter estado em sítios demasiado fechados com gente a fumar, apesar de
já me terem atirado fumo para a cara e apesar de já ter sido queimada
por cigarros, continuo sem ser extremista. Mas também não aceito
o extremo oposto, aquele em que se defende os "direitos" dos fumadores.
Vem isto a propósito de uma nova guerra, que pode ter contornos parecidos.
Numa viagem de comboio entre Leicester e Londres reparei que estava numa carruagem
especial: uma carruagem livre de telemóveis. Quer isto dizer que, tal
como nas carruagens em que não se fuma, ali não se pode falar
ao telemóvel. Gostaria de saber o que esteve na origem desta decisão
dos caminhos de ferro ingleses. Terão sido os utilizadores a pedir? Já
me lembrei ? e já fiz ? muitos protestos sobre o funcionamento de instituições
e serviços. Mas nunca me lembrei de fazer semelhante pedido.
Falar ao telemóvel num comboio é, como tudo o resto, um acto
que reflecte a educação e a maneira de estar na vida. Para falar
ao telemóvel não é preciso berrar. Portanto, naquilo que
me diz respeito, falar ao telemóvel é o mesmo que conversar. Só
que o interlocutor não está ali. Está noutro sítio
qualquer. Assim sendo, não me irrita nem me incomoda que as pessoas falem
ao telemóvel em transportes públicos. Basta que tenham bom senso.
Ora, não havendo bom senso para falar ao telemóvel, também
não há bom senso para outras coisas. E há muitas outras
coisas que se fazem em transportes públicos que me incomodam muito mais.
Não resisto a propor a minha carruagem de comboio perfeita, no que diz
respeito ao comportamento dos outros passageiros.
Antes de mais, preferia uma carruagem livre de fumo. Não se podia fumar,
portanto. Assim como não se poderia ir ao bar buscar aquelas comidas
que deixam um cheiro agoniante. Muito menos se poderia deixar restos de comida
e de lixo por todo o lado, em resultado do acto de comer e beber. Portanto,
o melhor era que não se comesse de todo no comboio. Um inocente chocolate
poderia aceitar-se se fosse comido com bom senso. Comer um chocolate com bom
senso quer dizer comer um chocolate com a boca fechada e seguindo o respectivo
invólucro para o lixo.
Mas não ficava tudo resolvido quanto a cheiros. Se eu mandasse, na minha
carruagem de comboio ninguém poderia usar perfumes e afins em exagero.
Assim como as pessoas deveriam passar por um inspector, que verificasse do seu
grau de limpeza, para que uma eventual falta de banho assíduo não
incomodasse os outros passageiros. Mudar fraldas de bebés, nem pensar!
Já que falo de bebés, teria também que se acabar com o
descaramento de amamentar bebés em plenas carruagens de comboio.
Pensando melhor, acho que devia haver carruagens livres de crianças.
Assim evitavam-se os cheiros desagradáveis, os choros insuportáveis
e as brincadeiras irritantes. Sobretudo, não teríamos que sorrir
sempre que as inocentes crianças decidissem fazer uma gracinha. Mas o
melhor de tudo nestas carruagens é que nunca correríamos o risco
de fazer um viagem inteira com o encosto do banco a levar pontapés de
crianças, sem que os pais façam alguma coisa.
Estou na dúvida sobre uma coisa que acontece frequentemente nos comboios:
meter conversa. Por um lado, sinto-me tentada a propor que não se possa
meter conversa com estranhos na minha carruagem de comboio. Mas, por outro lado,
sei que às vezes se encontram pessoas interessantes nestas viagens. Fazendo
um cálculo entre as conversas chatas e as interessantes, parece-me que
o risco de ficarmos aborrecidos é maior. Portanto, proíba-se meter
conversa com o passageiro do lado.
Na minha carruagem de sonho seria ainda proibido ressonar, ler o jornal do
parceiro por cima do ombro, ouvir música (sobretudo quando põem
auscultadores e nós temos que gramar com a batida insuportável),
abrir ou fechar janelas sem o consentimento de toda a gente, ocupar lugares
com malas quando vai gente de pé e assobiar às miúdas bonitas.
Claro que tudo isto não passa de um exercício de cinismo. Foi
tudo o que me veio à cabeça quando percebi que estava numa carruagem
livre de telemóveis. Proíbam mas é o uso de telemóveis
em sítios como os hospitais. Porque eu sei bem o que é acordar
de uma anestesia geral e ter em som de fundo o marido da minha companheira de
faca a fazer e atender telefonemas durante uma tarde inteira...
Hália Costa Santos
Universidade de Leicester/UK
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