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Praxes académicas - Rituais iniciáticos ou tradições inocentes?

O ressurgimento das tradições académicas na universidade portuguesa é um fenómeno que parece ter vindo para ficar. Depois de um período em que falar de capa e batina, praxe ou o cortejo, era sinónimo de "passadismo" e de "antigo regime", hoje, quem não é pela praxe é visto como um "careta" e não sabe entrar no "espírito universitário". A questão está longe de ser pacífica, já que, ao contrário de outras que habitualmente unem os estudantes, esta é das poucas, senão mesmo a única, a despertar claras reacções de amor-ódio.
O Hugo Couto, por exemplo, tem 20 anos e não esconde um ligeiro orgulho em afirmar que este ano foi praxado "todos os dias", apesar de tal significar - como ele próprio admite - "ter feito coisas estúpidas no meio da rua".
"Saí à rua todo vestido de preto, com a cara pintada e com pensos higiénicos na cabeça e no corpo, mas estava na boa...". No seu entender, esta e outras práticas revelam-se, no limite, "interessantes", quanto mais não seja porque se "perde vergonha de passar por situações embaraçosas". Mas esta não foi propriamente uma praxe "inteligente", o que, na sua opinião, consiste em ser-se submetido a brincadeiras engraçadas, "das quais todos gostemos, e não apenas as de que os "doutores" gostam", diz.
"Ele foi sem dúvida o mais malhado", diz Virgínia França, de 19 anos, aluna do mesmo curso, e uma das "doutoras" que acompanhou caloiros como o Hugo na sua entrada na universidade. Mas não a todo o custo: "Deixei de praxar a partir do momento em que vi certos elementos exagerar no comportamento. A praxe deve servir para integrar o caloiro e não para o humilhar", afirma, não se inibindo de fazer uma autocrítica à hierarquia que se estabelece entre caloiros e "doutores", com a qual não concorda. Ainda por cima, acrescenta, "quando o mais "burro" é o que costuma mandar mais".
Luís Fernandes, psicólogo de formação, desenvolve investigação no campo da etnologia na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto (UP). Apesar de este não ser um tema que o apaixone, tenta fazer uma análise objectiva das tradições académicas e, designadamente, da praxe: "Qualquer ritual que se mantém sem ir contra a vontade dos indivíduos é porque deve fazer algum sentido. Não faço ideia é qual será...", diz Fernandes, recuando à sua própria experiência estudantil - entre 1979 e 1985 -, numa altura em que estes rituais "simplesmente não existiam", substituídos por outros de carácter eminentemente político.
É no período de "arrefecimento" do período revolucionário - correspondente à primeira metade da década de 80, na qual a sociedade portuguesa entra num processo de normalização democrática - que aparecem os primeiros sinais de estudantes interessados em aderir a um movimento de regresso às origens da tradição académica, que anteriormente estava praticamente banida. Um ressurgimento, na opinião de Fernandes, ao qual não é alheio uma recuperação dos valores políticos do centro-direita e de um progressivo esvaziamento da esquerda.
Um movimento minoritário que foi engrossando as suas fileiras e que, na opinião de João Teixeira Lopes, sociólogo e professor da faculdade de Letras da UP, é directamente proporcional à massificação do ensino superior.
"A posição que defendo nunca foi testada empiricamente e trata-se, portanto, de uma mera hipótese, mas, na minha opinião, o recente apego às tradições académicas prende-se sobretudo com a massificação do ensino superior", cujo número de alunos, lembra, praticamente decuplicou entre o final da década de 60 e final de 90.
"Para os pais destes alunos - na sua maioria com níveis de escolaridade e de qualificação reduzidos - ver os filhos na universidade é a prova visível de um percurso de ascenção social, ao contrário do que acontecia no princípio dos anos 80, quando frequentar o ensino superior era, já de si, um factor de distinção".
Um apego à ostentação que poderá estar, de certa forma, relacionado com o forte investimento por parte dos pais, mas que também é sentido pelos estudantes. Daí, explica Teixeira Lopes, haver uma "necessidade de exibir essa conquista" através de rituais que invadem o espaço público, como é o caso não só da praxe académica, mas do próprio cortejo ou da queima das fitas. "E os estudantes mostram-no da forma mais ruidosa e exuberante possível", diz.
Este "reiventar" das tradições é, na sua opinião, igualmente indissociável de um futuro profissional "pouco risonho", muito provavelmente preenchido por um ciclo de flutuação em vários empregos, que conduzem a um "prolongamento da juventude e da dependência face aos pais", contrariamente ao que acontecia há trinta, ou quarenta anos.
Essa incerteza, refere este sociólogo, "pode conduzir a situações de profunda frustração e reflectir-se na agressividade, cada vez mais notória, que os rituais da praxe académica ostentam" como ele próprio admite ter verificado no início deste ano lectivo.
"Os incautos acabam por ser apanhados, muito provavelmente por não terem uma alternativa a estes rituais, por este ser o único meio de integração social", continua. E quando se recusa a praxe corre-se o risco de ser-se ostracizado, e "ser-se ostracizado numa faculdade pode significar solidão e depressão", sublinha. Nesse sentido, João Teixeira Lopes critica os movimentos associativos e as juventudes partidárias por não terem a imaginação suficiente para "contrapôr alternativas".
Não é o caso da sua própria faculdade, onde, este ano, houve uma tentativa de agitar as águas, através da distribuição de um panfleto onde se contestava a praxe e se exigia o direito a não participar nela. "A praxe não é mais do que uma forma de divisão, onde se torna evidente uma hierarquia erradamente estabelecida dentro da faculdade, procurando impôr respeito e sujeição à autoridade", podia ler-se no folheto, da responsabilidade do Antípodas - Movimento Anti-Tradição Académica. Um outro panfleto, igualmente posto a circular naquela faculdade, apresentava as razões que movem os pró e os anti-praxistas e pretendeu ser o princípio de um debate mais alargado sobre a tradição académica.
Uma das autoras foi a Sofia Maia, de 19 anos, que, apesar de integrar a associação de estudantes, insiste em demarcar a sua posição pessoal relativamente àquela que possa ser a da associação. "Só não sou mais militante nesta causa porque não tenho ninguém em quem me apoiar, e isso é um factor de desmotivação. Somos poucos e talvez por isso nos falte mais iniciativa".
Ela própria foi praxada durante três dias quando entrou para a faculdade. Passou por essa experiência porque, reconhece, vinha um pouco "desorientada". E esse é provavelmente um dos motivos mais fortes pelo qual os alunos se submetem a "práticas terríveis": "sentem-se vulneráveis e estão receptivos àquilo que lhes sugerem, ainda para mais sendo uma ideia tão pré-concebida".
João Teixeira Lopes aplaude a iniciativa e defende o debate. "Retirar esta questão do silêncio a que foi remetida e pôr as pessoas a pensar nela é um primeiro passo. O segundo passo é propôr alternativas de integração à praxe", diz, cuja inexistência se deve, nomeadamente, à "pasmaceira" em termos culturais e de animação verificado no início dos anos lectivos.
Na sua opinião, a maioria dos estudantes vive numa situação de anomia, que conduz a um enfraquecimento dos laços sociais. "A praxe cumpre a função do associativismo, mas mal. E os estudantes precisam de reforçar os laços entre si, mas não os encontram: nem no diálogo com os professores, nem entre si, porque a competitividade entre eles é muito grande".
Mas muitos estudantes parecem não fazer caso e admitem mesmo que a praxe é um momento por que há muito esperavam. É o caso do Pedro Rodrigues, de 19 anos, que considera ser uma "maneira engraçada" de entrar na universidade. "Desde que não abusem, não me importo nada".
Rui Brito, de 25 anos, e António Pereira, de 22, são estudantes de ciências e já praxaram muitos caloiros. Acima de tudo, consideram que ela não deve servir para "descarregar frustrações" e que à falta de um código da praxe as pessoas devem "reger-se pelo bom senso". E que significado tem para eles o traje académico, que envergam publicamente? "Uso traje na mesma medida em que se usava antigamente, quando servia para não se distinguir as pessoas ricas das pobres", diz o Rui. "Depois, há a ideia errada de que os caloiros não podem usar traje, quando ele é permitido logo no primeiro ano - pelo menos na nossa faculdade", refere, por seu lado, o António.
Pedro Cunha, 21 anos, estudante de direito, considera ser necessário "contextualizar" as tradições académicas, mas que, ao contrário do que alguns pretendem, "é impossível retornar ao passado".
"Eu não liguei muito à praxe porque vivo no Porto. Mas imagino que para aqueles estudantes que não são da cidade e que "caem aqui de pára-quedas" esta seja uma forma possível de integração". Não concorda é com facto de muitos se aproveitarem do aparente poder que possuem para se auto-evidenciar, levando a que, em certas situações, se ultrapasse o próprio "limite da sensibilidade humana".
João Teixeira Lopes considera que este exacerbar da praxe corresponde a uma história que os próprios estudantes contam a si mesmos, "uma história em que aparecem alegres, desinibidos", mas que, como qualquer narrativa, tem uma carga ilusória e de auto-mistificação. "Ao fim e ao cabo, é enganarem-se um pouco a si mesmos face ao futuro imprevisível que se avizinha".
Hugo Neto é o presidente da Federação Académica do Porto e um praxista assumido. "Claro que isso não reflecte a posição da FAP", ressalva, "já que ela é composta por associações de estudantes com posições bastante diferentes sobre a praxe". Porém, em sua opinião, apesar de o Porto não ter a mesma tradição de Coimbra, é uma das academias mais antigas do país e tenta, de certo modo, "puxar dos galões dessa antiguidade".
"A praxe é apenas mais uma forma de o afirmar" e aponta-a como exemplo de boas práticas, nomeadamente no que se refere ao acompanhamento pessoal que é dado pelos mais velhos aos recém chegados. "Emprestam apontamentos dos anos anteriores, indicam-lhes os sítios onde se pode comer mais barato, onde é mais fácil arranjar casa, etc..., numa tentativa salutar de integração".
Admite, porém, existirem determinados aspectos menos positivos na praxe, como o culto da hierarquia e a falta de controlo que pode levar à prática de "certos abusos" sobre os estudantes mais desapoiados ou desenraízados. "Como em tudo, há a boa praxe e a má praxe. A liberdade de opção é que deve ser sempre garantida".
"Os estudantes que defendem estas práticas costumam dizer que têm uma função integradora. Eu estou disposto a concordar com isso, até porque a antropologia já nos ensinou que os rituais iniciáticos têm um carácter eminentemente integrador para todos os indivíduos da comunidade. Eu questiono-me é porque razão uma cerimónia que podia cumprir um papel importante, descamba em práticas que a contrariam...", refere Luís Fernandes, recorrendo aos mecanismos de funcionamento das chamadas "sociedades urbanas complexas" para a explicar. "Nelas", refere o investigador, "os rituais tipificados já não têm lugar, tornando-se natural que um ritual estereotipado como este não tenha condições de sobrevivência". E quando não existem condições de sobrevivência, ele degrada-se. "É o que está a acontecer com estes rituais...".

Ricardo Jorge Costa


  
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Edição:

N.º 96
Ano 9, Novembro 2000

Autoria:

Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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