Página  >  Edições  >  N.º 85  >  O Rolex, a Tromba Embutida e Outros Temas Pedagógicos...

O Rolex, a Tromba Embutida e Outros Temas Pedagógicos...

(aos meus amigos Pablo Gentili, Beth Macedo, Renato Oliveira e Isabel Pricila )

O Hildemar existe mesmo. Por vezes chamo-lhe Hildebrando e ele não leva a mal. Advogado aposentado tem de fazer pela sustentação e vai daí, botou uma casa lotérica lá numa esquina da praça Uruguaiana. É um local fantástico, aquele. Dali olhamos os enormes edifícios do centro do Rio, a própria praça é gigantesca, barulhenta, luminosa, perfumada, tem uma estação de metrô, vive cheia de camelôs, muitos com vida bem difícil, sobretudo os que são apenas sacoleiros.
Explicando: um sacoleiro apanha o ônibus até ao Paraguai, volta no seguinte, preferencialmente um "tribufu" (ônibus mau ou mulher feia). Deposita as mercadorias em praças que queriam ser a Uruguaiana (ou nela), volta pró próximo tribufu, não pode parar para ver as quedas de água de Iguaçu, nem a barragem de Itaipu. Vai vivendo nos Estados do Rio, S. Paulo e Paraná, pra lá e pra cá. Os clientes esperam-no, e o patrão também. Assim se esgota a vida do sacoleiro.
Nas minhas idas ao Continente-Brasil visitei sempre a Uruguaiana. Num canto vizinho do meu amigo tem um especialista em relógios. Coisas fantásticas feitas pela "Ind. Bras." - a Indústria Brasileira, a mesma que produz aviões a jacto, a tal que faz milhões de televisores, (2ª produção mundial) ou automóveis (9ª produção mundial). Alguns relógios têm gravado "zona franca de Manaus". Já não há quem queira roubar relógios destes, porque são de "camelô". Mas muitos são belos, excelentes, e já ofereci alguns a amigos verdadeiros que vou tendo. Coisas de português: um senhor em tempos fugido do regime de Salazar comprou a muito custo (a prestações) um Rolex. Demorou anos a pagar, o salário curto, mas lá lhe chamou dele e hoje passeia pelo Rio com o bicho no pulso e os assaltantes pensam que é relógio de camelô!
A confusão é a irmã gémea da clareza, ou vice-versa, vai tudo dar ao mesmo. Há uns tempos convenci uns amigos de que a famosa "marca de água" - figura que se deve vislumbrar nas notas de banco, como que "emparedada" no meio delas, se chama, de facto "tromba embutida". A partir desse começo, alguns tomaram a sério tal liberdade numismática e queriam ver trombas embutidas em tudo que por aí circula, obra de Banco emissor. Não é preciso! É um embuste! E não faz falta porque trombudos já existem que chegue, com a desvantagem de nem embutidos estarem...
Posso e devo relatar-vos outro caso grave, filho da nossa época desvairada. Outro amigo, professor de futuros médicos, não podia deslocar-se a um jantar em casa do Lázaro, pela simples razão de se encontrar a ajudar o pai numas vindimas. O convidadeiro, porém, desconfiava de tal motivo. Há o Concorde, é só facilidades, não pode faltar assim ao meu jantar! Desesperado, não querendo deixar o comensal faltoso sem justificação global, lembrei-me de lhe arrumar com o nó na tripa! O homem estava com o nó na tripa. Fez-se um silêncio pesaroso, o pior foi quando nos encontrámos todos e a esposa do Lázaro sugeriu ao faltoso como deveria fazer nessas situações. Aí ele afirmou que não padece de nenhum nó, mas, espanto meu - o tal nó pode mesmo dar-se! Afinal a doença existe e é até perigosa.
Tudo isto ainda a propósito da Uruguaiana (que, como Recife, me faz lembrar pedaços de Luanda). Este ano trouxe de lá mais uns relógios. São bons, posso garantir. Porque não devemos usar um relógio falso se ele é "igual" ao verdadeiro? Deveremos nós, num excesso de zelo honesto revelar que a máquina é falsa? Pra quê? Não é que o pessoal vai ficar todo apardalado com o nosso status? Quem sabe se é verdadeiro ou falso? Não é bonito? Não funciona bem? O que quer afirmar o proprietário da máquina? Aquilo que nós também podemos afirmar (mais barato). Um "bom" relógio não serve só para informar a hora. Para isso qualquer instrumento vulgar chega.
Estamos aqui a falar nestas pedagogias. É isso é... Num tempo de banhos de oiro o que conta é a aparência. A ficção é igual à realidade.

Carlos Alberto Mota
UTAD/ Vila Real


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 85
Ano 8, Novembro 1999

Autoria:

Carlos Alberto Mota
Univ. de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), Vila Real
Carlos Alberto Mota
Univ. de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), Vila Real

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo