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A Europa em Prospectiva

Em Setembro, M'Bongo Matango estava sentado na Piazza Garibaldi, bebendo um pequeno e caríssimo (mas óptimo) café. Lembrava-se das aulas que dera, meses antes, em Portugal. Sempre sentira uma estranheza, nesse tempo. "Os alunos devem manter uma postura rígida, devem ser educados. O processo educativo é uma coisa muito séria, nada de risos nem bandalheiras." Depois, com ar de louco, recomeçara: "o processo educativo é uma palhaçada; não vos prepara para nada e só vos poderá levar ao desemprego. Os professores estão cheios disto e isto não vos serve para nada." Os outros olhavam pelas janelas. Lá fora prosseguia tudo. "(...) pensem nas vantagens da disciplina."
Tocou. Sussurros, ter de aturar um preto, só neste maldito país! Levantavam-se e saíam. Na sala de professores discutia-se indignadamente sobre cobertores, futebol e a tragédia do péssimo nível global dos alunos . Nos intervalos bebia-se vinho, álcool [que horror]- em geral também café; comia-se em conjunto, para se estar em conjunto - fumava-se.
Voltou a olhar, admirado com todo aquele giallo-parma; contemplou com apetite as descendentes do Império, dos seus escravos e conquistadores. Em Parma há esse amarelo característico - e a mania das gelosias todas pintadas de verde, do presunto; há a Parmalat e a Barilla (que faz massas).
M'Bongo era muito escuro e soprava uma ventania leve. Os mosquitos são tão abundantes aqui como no Zaire! Quando conseguisse um contrato qualquer começaria a jogar um jogo e a ganhar muitas liras .Nunca escreveria um livro porque qualquer vida daria um bom livro. Lembrava-se do céu estrelado do Sul que é fresco-claro,o Sol já não arde ...
O Cruzeiro, o Triângulo podem ver-se. O Rio de Janeiro é fascinante. [Tanto como qualquer ilha africana embora tão diferente]. Bazaruto e mar azul, os marlings, a vida que brota da fruta ao sexo, da faca ao sangue na violência da rua de todos os dias. O Rio encanta pela vida e a morte, pela música e pela alienação que leva à loucura e... o avião demora tão pouco a levar-nos tão longe.
Um sorriso sincero de fome e de inocência, do Sul - dos Congos que não são Populares, das Novas Zelândias com carneiro para exportar. É o lugar dos homens-meninos, que vai de certeza acabar.Há Iguaçu e Itaipu e Paraguay/Guarani , Portunhol, Elefantes , manga e macumba, baianas e massai, dizem que Melbourne e Buenos Aires, tango e rumba, morte e vida são parecidas mas a vida é vívida. [É aí que a vida é um jogo a arder com pessoas lá dentro.] Mas isso é segredo, não se diz a ninguém!
M'Bongo ouviu a voz: eram os Vigili Urbani, pediram-lhe o Permesso di Soggiorno. Não tinha, claro, mas foi ficando. Sessenta anos depois já vira muitas mulheres, sabia que Itália era uma coisa velha, tinha ido a Génova de um certo Colombo do Mar-Oceano . Viajara: estivera na Grécia e na Turquia (coisas tão velhas as da Anatólia, mas talvez menos que a África).
Como estaria o Zaire? Quando de lá saíra havia SIDA, os seus tinham morrido disso. A tal Amazónia fora queimada. Diziam que respiravam pior mas ele não notava; tinha sempre comido muitos gelados; trabalhara de tudo e até havia um passaporte com uma roda de estrelas que lhe tinham arranjado pelo ano 2002. Detestava os coreanos que andavam agora por toda a bassa parmense. Olhava-os com rancor, mas não ligavam. Eram grandes senhores. O dialecto da cidade revelava influências da Ásia.
Noutros Continentes cópias de M'Bongo machadaram até à exaustão minas de carvão, pretas, e cada vez mais negros, cantavam hinos. Morreu por alturas do Grande Experimento Norte-Africano (foram aí exterminados os árabes do Magrebe). O Islão não tinha evoluído como devia ser - isso era inegável. Tinha lido livros e [diziam que] sempre bondoso. [ É falso; não há homens bondosos; apenas bons e maus mais que sete bacalhaus , cantava em menino o seu irmão mais velho.]
Falara pouco porque era dos que tinham dito que já estava tudo dito. Os funerais de todos os M'Bongos foram - em todos os Continentes - na mesma Bamako. Foram lá milhares ou até dezenas. Sempre pensara se haveria ou não vida além desta. O velório decorreu normalmente. Não se disse que o cadáver estava magnífico, mas tagarelou-se com vontade e muito riso. Bebeu-se maçã fermentada com tamboril, noite adiante.
À hora de enterrar estava difícil - o coveiro bêbado. Irrompeu o fortalhuço, completamente desconhecido; tirou o casaco e com pazadas raivosas depressa [e só] fez o trabalho. Os outros ficaram-se covardes e aparvalhados . Quando acabou urrou : "já enterrei uma boa porrada deles!" Meteram-se todos a caminhos.
Na Piazza Garibaldi havia mais calor; em Janeiro eram normais os 20 C e em Julho os 45; tinham posto umas letras estranhas no pedestal da estátua; a Via Trento passara a chamar-se BO-PAK. A bandeira de estrelas sobre um fundo azul acompanhava o pássaro presente, o único que poderia acompanhar os aviões. Os Gelatti estavam como sempre.

Carlos Alberto Mota
UTAD, Vila Real


  
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Edição:

N.º 83
Ano 8, Setembro 1999

Autoria:

Carlos Alberto Mota
Univ. de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), Vila Real
Carlos Alberto Mota
Univ. de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), Vila Real

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