Como sabem "Satanás foi definitivamente derrotado". Quem o afirmou, durante as férias, foi o Papa João Paulo II. Como também sabem, o chefe da Igreja Católica é infalível. Sendo assim, não há dúvida - o mafarrico foi definitivamente arrumado já lá vão quase dois mil anos. E no entanto, o malandro, mesmo sabendo-se perdido, persiste em fazer das suas. Pelo menos é o que parece. Mas também não devemos perder de vista que o que parece normalmente não é. A realidade é outra coisa que não a aparência. Sendo assim só aparentemente o mal, o sofrimento (...) é produto da acção de Satanás. Na realidade o "malandreco" é muito capaz de permanecer, já lá vão quase dois mil anos, triste e envergonhado pela derrota, nas profundezas do inferno (isto se houver inferno, e este não for mera aparência, pois essa dúvida também surgiu durante o Verão). É pois muito provável que Satanás tenha andado a ser injustamente responsabilizado pelos males que, durante séculos, desgraçaram a humanidade. A realidade mostrar-nos-á um dia que os verdadeiros responsáveis são homens e mulheres de carne e osso como qualquer um de nós. De certo modo Satanás tem sido uma escapatória para fugirmos às nossas responsabilidades. Atiramos para cima dele com a responsabilidade por todos os males e crimes. É como o futuro ou o século XXI. Andamos todos a construir a sociedade do futuro, a escola do futuro, a formação do futuro, "uma formação de qualidade para o século XXI"! Grande treta! Os políticos, e muitos de nós atrelados a eles, andam, há mais de vinte anos, a construir a escola do futuro "uma escola para o século XXI". O que não dizem é se a escola que andam a construir é para o princípio, para meados, ou para o fim do próximo século. Seja como for, será para quando já não andarmos por cá e não tivermos de mostrar serviço nem capacidade, para pedir responsabilidades. Com eleições à porta mais promessas de futuro. «Cartões electrónicos, detectores de metais. Câmaras de vídeo nas salas de aula, nos recreios, nos autocarros. São algumas medidas de prevenção da violência nas escolas norte-americanas. (...) As aulas recomeçaram. Milhares de escolas reforçam a segurança». (Público,19.08.99). Satanás, mesmo velho e desactivado, num canto do inferno, encostado indolentemente a uma parede, perna preguiçosamente traçada, um cigarro no canto do lábio, um sorrisinho malandro, olhar de velho vivaço, goza perante os esforços estúpidos e desajeitados das autoridades escolares americanas (e, claro, de todas as outras administrações). Ou não vamos todos pelo mesmo caminho? Ou será que perdemos a preguiça e a vaidade e começámos a pensar os problemas que temos (na realidade) e deixámo-nos de «palavrear» sobre a aparência das «coisas sérias»? «Para irem às aulas, os alunos são obrigados a utilizar um cartão de identidade electrónico e a passar por um detector de metais (...). Algumas instituições deixaram de ter cacifos e não autorizam os estudantes a utilizar mochilas - o que obriga os alunos a terem dois exemplares dos livros, um em casa outro na sala de aula. As entradas e saídas dos edifícios foram reduzidas às essenciais (...)». Estas instituições ainda são lugares onde se educa e se aprende? Se a sociedade criou isto (tornou-se nisto) valerá a pena manter estas instituições abertas? É a isto que chamam a sociedade democrática? Isto é o exemplo da "melhor democracia" que temos? Como chegámos aqui? Porque aceitamos pacificamente fazer parte desta miséria? Não somos capazes de olhar a realidade, de rejeitar o que temos, e de inventar outra coisa que nos sirva agora e no futuro? De facto, os homens e as mulheres que comandam o nosso mundo «globalizado» dispensam o velho e decrépito mafarrico medieval. O pobre diabo foi ultrapassado. Não sei se foi derrotado em definitivo por Jesus Cristo, mas foi seguramente ultrapassado pelos actuais financeiros que governam as várias partes de que se compõe o mundo actual. «Plano de emergência para o ensino da Matemática. Foi com esta designação que Durão Barroso apresentou, (...) "uma medida emblemática" do seu programa de governo. (...) Objectivo: permitir aos estudantes obter melhores notas e estar mais bem preparados para os desafios da sociedade de informação». O velho Satanás, vencido e definitivamente convencido, embora desdentado, não pode deixar de sorrir. Cultivemos a aparência. É esta que nos diz que sem matemática somos todos zeros. Responder aos desafios da sociedade da informação sem sermos "uns barras" a matemática não dá. Criemos as divindades do saber. Criemos as "disciplinas nobres" junto das quais "morre" a maioria dos alunos. Mas imaginem que em vez da matemática só éramos notáveis se soubéssemos música. Ou desenho. Ou pintura. Ou escultura. Fossem estas (entre outras) as disciplinas de excelência para todos e já viram a "chumbaria"? Era um "reter" que nunca mais acabava. Fosse o canto a divindade eleita quantos de nós passavam da 1ª classe? Porque é que o "diabinho" das eleições leva tanta gente ao disparate? «Se pudéssemos reduzir a população da terra a uma aldeia de cem habitantes (com as mesmas percentagens actuais) teríamos o seguinte resultado: haveria 57 asiáticos, 20 europeus, 14 americanos e 8 africanos. Metade da riqueza total do mundo estaria nas mãos de 6 pessoas-todas americanas. Oitenta viveriam em casas de qualidade inferior. Setenta seriam analfabetas, 50 estariam subalimentadas. Uma encontrar-se-ia prestes a morrer e outra a nascer. Só uma das cem receberia educação universitária e nenhuma teria computador» (Carlos Fuentes). E Satanás está obsoleto, vencido e convencido, olhem se não estivesse. Aparentemente vivemos no mundo da informação, da comunicação. Mas na realidade não viveremos num mundo dos diabos? Não sabem se os vossos filhos (ou alunos) conseguirão ter uma correcta educação, boa alimentação e saúde, já para não falar de uma boa, prestigiada e rentável profissão? Ensinem-lhes a flexibilidade. Eduquem-nos na precaridade, na incerteza do amanhã, formem-nos para o "desemprego", isso sim, poderá servir-lhes para alguma coisa. (...) Os lucros sobem em flecha? As empresas conseguem lucros tão elevados que já nem sequer os investem? As empresas nunca foram tão alimentadas pelos subsídios de um Estado que desprezam (...)? É a guerra meus amigos. Aceitem os desafios da pós-modernidade. Ensinem e preparem os vossos alunos "como deve ser". É preciso que eles aprendam a entrar na guerra. Sejam móveis. Prontos a ser contratados de manhã e despedidos alegremente pela tarde. Flexíveis. Bem humorados. Engravatados. Eles que saibam fazer vénias. Aprendam a sorrir em todas as circunstâncias. Mostrem energia. Mostrem-se supercontentes. Superconfiantes. Superanimados. Superenergisados. Estejam prontos a atacar. Serão chamados quando for preciso. Aprendam a esperar as oportunidades. Estejam sempre prontos. Criem a escola pós-moderna. Eduquem para a grande guerra económica mundial. A guerra precisa de dólares, financeiros generais, economistas e chefes vários e soldados, soldados e soldados" e propaganda. Muita propaganda. Vejam como o maligno, embora derrotado e ultrapassado, e disfarçado em várias personagens, (até de antigo e competente secretário de Estado) vai dando conselhos. O Belzebu faz a propaganda da globalização. É em nome dela que pede a mudança, a inovação. Mas não da globalização que nos aproxime de uma realidade do tipo "todos somos cidadãos do mundo", mas da outra, a que afirma que "todos somos clientes do supermercado mundial". Sigamos por isso a recomendação do Papa, que afirmando embora a definitiva derrota de Satanás, pelo sim pelo não, vai recomendando que a luta diária contra o mal «exige uma vigilância contínua» e, acrescentamos nós, «não vá o diabo tecê-las». Pode Satanás ter sido definitivamente derrotado mas tem sucessores. Mais vigorosos que ele. Mais ardilosos. Mais políticos. Mais modernos. Mais instruídos. Mais manhosos. E espalhados em todos os campos da vida. Nos últimos vinte e quatro anos, milhares deles, uns mais retorcidos que outros, andaram à solta em Timor Leste, provocando um sofrimento que de tão profundo e longo, já julgávamos sem fim. Dissémos, quando do anúncio da consulta em Timor, que tínhamos esperança porque os mortos, os que morrem injustiçados, mais tarde ou mais cedo, haviam de votar pela mão dos vivos. E hoje (dia da votação em Timor) lá estava o povo. Hoje, em Timor, o Diabo perdeu a guerra. Os vivos, engolindo serena e corajosamente o medo, votaram por si e pelos mortos. Foi assim que os vimos à porta dos locais de voto. Determinados em dar, se necessário for, a vida por um voto. Talvez Satanás ainda provoque dor em Timor. Mas definitivamente, em Timor, este diabo foi derrotado. José Paulo Serralheiro
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