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Vergílio Ferreira - Um Volume Póstumo de Ensaios

No prefácio a esta edição de Espaço do Invisível 5, um dos mais atentos estudiosos da obra vergiliana como é Helder Godinho esclarece que "a selecção dos materiais estava feita e devidamente organizada para um volume que, pela data, deveria então sair em breve, mas as versões finais dos textos não tinham ainda sido fixadas", porque é sabido que Vergílio Ferreira alterava com frequência os seus escritos, depois de serem publicados ou dactilografados, e muitas vezes as emendas eram feitas em mais do que uma cópia. Daí ter sido necessário um trabalho de fixação dos textos feito com grande atenção e cuidado por parte de Helder Godinho, que isso mesmo explica nas páginas do seu prefácio.
Mas o que importa colocar em relevo na edição póstuma do quinto volume de Espaço do Invisível é que todos estes ensaios ainda dialogam com o leitor de forma viva e a pretexto de tantas coisas, pelo modo discursivo e crítico como o autor de Para Sempre aborda as questões primordiais do tempo em que viveu. Por isso, é com enorme prazer que se retoma a leitura de um profundo ensaio como Arte Tempo, publicado em 1988 em volume separado, no qual se regressa ao problema do "belo" e do "actual" na arte do nosso tempo e por ele se definem lucidamente algumas das clivagens das várias formas de expressão estética, sobretudo do domínio da pintura.
Mas saliente-se também que neste Espaço do Invisível 5 aparecem belos textos de circunstância, e que por isso mesmo se revelam de todo o interesse no entendimento do próprio discurso vergiliano no domínio das ideias, como "A Voz do Mar", pronunciado em 1991, na altura de receber o "Prémio Europália", e serviu para fazer em Bruxelas uma superior afirmação da língua portuguesa ou da nossa própria identidade como povo, podendo então proclamar: "O orgulho não é um exclusivo dos grandes países, porque ele não tem que ver com a extensão de um território, mas com a extensão da alma que o preencheu. A alma do meu país teve o tamanho do mundo. Estamos celebrando a gesta dos portugueses nos seus descobrimentos. Será decerto a altura de a Europa celebrar também o que deles projectou na extraordinária revolução da sua cultura. Uma língua é o lugar donde se vê o mundo e de ser nela pensamento e sensibilidade. Da minha língua vê--se o mar. Na minha língua ouve-se o seu rumor como na de outros se ouvirá o da floresta ou o silêncio do deserto. Por isso a voz do mar foi em nós a da nossa inquietação. Assim o apelo que vinha dele foi o apelo que ia de nós. E foi nessa consubstanciação que um novo espírito se formou, como foi outro o espírito da Europa inteira na reconversão total das suas evidências" (pp. 83-84).
Ou ainda esse importante texto-discurso pronunciado na cerimónia da entrega do "Prémio Camões" em 1993, onde a dado passo pôde abordar a questão da "literatura de consumo" (ou comestível, como em Luiz Pacheco):
"Que é que se nos insuna de suspeita em face da chamada "literatura de consumo"? Porque ela raramente é má literatura, para que o logro se cumpra. O que caracteriza justamente essa literatura é o ser facilmente consumível, o falar ao imediato de nós, o dirigir-se à superfície de nós, onde estamos prontos a ouvir, o ser formalizada pelo que sabemos e assim visa distrair-nos e não perturbar-nos com o inesperado de si" (p. 121).
Mas, pela atitude prosseguida de tudo globalizar na sua prosa de ficção ou no ensaísmo literário, é neste que se pode encontrar uma "explicação" para o que é do homem mais essencial, porque a obra ensaística de Vergílio Ferreira se define dentro de certas coordenadas e valores ideológicos e exige que, na aceitação ou recusa dos seus postulados, se desvende uma forma pessoalíssima de pensar e de interpretar a arte e o pensamento nas suas vertentes fundamentais, sem perder de vista uma clara tendência estética e filosófica. Porque sempre o ensaísmo de Vergílio Ferreira nos oferece as "chaves" para descodificar as fontes originárias de uma coerência intelectual que nos chega de muito longe, na proclamada divisa de um mesmo equilíbrio interior, ou seja, a plena consciência de saber que "a força da nossa verdade tem que ver com a verdade da nossa força" pelas veredas de um "mundo original".
Assim, neste Espaço do Invisível 5, uma e outra vez o leitor atento se defronta com o rigor do pensamento vergiliano em redor de temas e questões como as do futuro da Europa após o enfraquecimento comunista nos países de Leste, do racismo e superpopulação, do ódio fundamental ou do fim da História proclamado por Fukuyama, ainda a par de leituras muito pessoais de autores como Marco Aurélio, Eça de Queirós, Fernando Pessoa, António Nobre, Eduardo Lourenço e António Magalhães e do seu renovado interesse por pintores como Resende e Charrua, acerca dos quais aparecem neste volume dois ensaios de leitura agradável no entendimento da sua arte.
Livro que uma vez mais ajuda a interpretar e a determinar os limites de um modo de pensar sempre fecundo e original, este 5º. volume de Espaço do Invisível dá uma renovada visão da obra literária e ensaística de Vergílio Ferreira, ao mesmo tempo que nos faz reler esse belíssimo texto "Do máximo ao mínimo" em jeito de última despedida que pôde ler em Viseu no dia em que completava 80 anos e um mês antes da sua morte: "À escala do cosmos, a espécie humana, surgida por um acaso infinitesimal, durará um breve momento. E dentro dele, cada um de nós não chega quase a existir. E no entanto, é por esse instante de impensável brevidade de duração, que é nosso dever mobilizar todo o esforço de uma intensa atenção para que o melhor do universo se não destrua. Porque nesse mínimo está o máximo concebível da grandeza e do milagre. A vida. Tão pouco e tão tanto. Que importância, em face disso, tem o minimal acidente de se terem, como eu, oitenta anos?" (p. 280).

Serafim Ferreira
crítico literário


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 80
Ano 8, Maio 1999

Autoria:

Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.
Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.

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