Educação e Desejo Na edição anterior deste jornal tive oportunidade de evidenciar a relevância do trabalho dos educadores enquanto profissionais da relação. Prolongando essa mesma reflexão, considero que é no espaço da relação que surge, de forma privilegiada, o desejo. Aquilo a que Emmanuel Levinas, um pensador a que muitas vezes tenho feito referência, designa como uma fome insaciável de infinito que nos impele a ir sempre mais longe, sempre mais além. Na perspectiva deste filósofo o desejo não emerge de uma falta, objectiva ou subjectiva. Antes surge como um excesso na medida em que o indivíduo aspira ao que não conhece nem pode ver, ao que está para lá do que possa alguma vez completá-lo. O desejo de infinito corresponde precisamente ao modo de sair da esfera da necessidade e entrar numa relação distinta daquela que desenvolvemos com as coisas que possuímos e que nos alimentam, nos vestem ou simplesmente nos ajudam a dar gosto à vida. Dessas coisas podemos de facto saciarmo-nos. Mas algo diferente acontece ao nível esta experiência da relação interpessoal. Aqui a consciência confronta outra consciência, outra interioridade. Como diz Alberto Caeiro, as coisas não têm dentro senão não eram coisas, o verdadeiro mistério está em haver quem pense no mistério. A presença de outro ser humano, coloca-nos de facto perante um enigma que, sendo impossível de compreender ou de assimilar, nos seduz e desafia. Ou seja, abre em nós o desejo. A outra pessoa não se oferece à posse como um alimento ou um objecto. A sua presença lembra-nos que há outros modos de ser, de compreender e de possuir o mundo. E é aqui que começa, verdadeiramente, a experiência de incomodidade e de inquietude que eleva a consciência. Porque no plano dessa necessidade metafísica a que chamamos desejo, não há saciedade possível, há apenas desassossego. Mas é, afinal, próprio do ser humano viver neste desassossego. Podemos interpelar a natureza, como desde sempre o temos feito. Podemos inquietarmo-nos e comovermo-nos face à beleza ou à fealdade do mundo que nem sempre conseguimos compreender e dominar. Mas as coisas do mundo, porque apenas coisas, não nos respondem, não nos põem em questão. E toda a aventura do pensamento exige esse pôr em questão. Quando ganhamos capacidade para nos distanciarmos do mundo, passamos a interrogarmo-nos não só sobre ele, mas também sobre nós próprios. É importante que todos possam viver uma relação feliz com as coisas que nos alimentam, satisfazendo-se de tudo de bom que o mundo oferece. O problema está em circunscrevermos o sentido da vida aos limites da necessidade e da satisfação. O sentido do humano transcende essa esfera. A ideia de infinito representa precisamente essa dimensão de transcendência absoluta com que cada ser humano se confronta cada vez que rompe com o mundo em que vive satisfeito e conformado. Por outro lado, é o desejo enquanto fome metafísica que torna o espírito mais atento a outros tipos de fome. Falo da fome de pão que marca a existência de tantos seres humanos, afectando-os na sua carne e na sua humanidade. Ora, ao reconhecermos a relação interpessoal como um lugar de eleição para a emergência de uma consciência antropológica marcada pelo desejo e pela responsabilidade ética, estamos a valorizá-la como lugar educativo fundamental. Na verdade, não é possível falarmos em educação sem considerarmos a necessidade de despertar esse tipo de fome metafísica que impele o homem para lá do seu possível. Não são, afinal, os projectos educativos senão modos humanos de dar expressão ao desejo? A ausência de uma dimensão de desejo atrofia a esfera das nossas escolhas e das possibilidades. Por isso viver sem desejo significa viver sem projectos. Não podemos, conforme pretendemos em educação, promover o encontro do homem com a sua humanidade desprezando a sua capacidade de projecto. A experiência do desejo é pois indissociável de toda a actividade educativa. Não apenas na medida em que procuramos ajudar os educandos a abrir os seus próprios caminhos em relação a verdades desejadas, mas também enquanto experiência vivida pelos sujeitos educadores. Por aqueles que, ensinando, se dispõem sempre a aprender, interrogando sistematicamente os seus saberes e as suas práticas. Assumindo plenamente a sua condição de condutores de sentido, como afirmava Maria João Couto num seminário sobre «Educação e Valores» realizado recentemente no Funchal. Reconhecendo, naturalmente, que os sentidos são construídos e aprendidos na própria relação, conforme lembrava também a autora. Para terminar, gostaria de insistir que é a valorização da dimensão de desejo aqui referida que nos demarca das visões excessivamente pragmáticas e tecnicistas que caracterizam alguns discursos e práticas em educação. Vivendo num mundo que, a todos os níveis, parece privilegiar o imediato, o visível e o superficial, julgo que importa afirmar a urgência desse desejo metafísico que nos faz humanos. Isabel Baptista Referências: Levinas, E. Totalidade e Infinito, 1988, Lisboa, Ed.70 Baptista, I. Texto apresentado no 1º Encontro de Filosofia de Educação. Braga, Nov.97
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