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O Cinema Americano e a Realidade

Estamos sempre à espera de acontecimentos decisivos vindos dos Estados Unidos, ou não são eles, neste momento 'os xerifes do globo' como dizia João Botelho no Público de 12.Julho.98. Em 'An Unmarried Woman' (1978) de Paul Mazursky, há uma réplica revoltante que resume bem a maneira de reagir aos traumatismos que abalam aquele país: 'actualmente, no que me diz respeito, uma boa guerra viria mesmo a calhar'.
Os inúmeros escândalos políticos e financeiros que os 'States' atravessaram desde Watergate parecem intervir numa esfera de 'big business', evoluindo por cima das pessoas: o seu poder catártico já está neutralizado, antes de impulsionar o 'élan' por que tanto esperamos.
A sociedade americana parece encontrar-se numa apatia, à espera de uma força exterior capaz de a fazer mexer-se. Para quem está de fora, dá a impressão que os assassínios, os compromissos políticos, os escândalos mais ou menos abafados, não são mais do que inumeráveis metásteses de um cancro que corrói um organismo político que se encarna no cinema numa obsessão: a dos 'serial killers'. O cinema americano nunca esteve tão fora da realidade. Recordemos como os vários Rambos antecederam a era Reagan e 'Grand Canyon' prognosticou a era Clinton. E, se quisermos ir mais atrás pode-se dizer que o final dos anos 40 e o princípio dos anos 60 foram épocas de uma lucidez agudíssima. Nada revela melhor esta desconexão que a espantosa - será que ainda se pode utilizar esta expressão? - notícia segundo a qual Leonardo DiCaprio vai receber 21 milhões de dólares para protagonizar 'The American Psycol' de Brett Easton Ellis.
Há pouco tempo, em Jasper uma cidadezinha do Texas, um negro, James Byrd, foi parado por três brancos, espancado, amarrado a uma camioneta e arrastado durante 4 kms numa estrada de terra batida. Quando o corpo foi encontrado, estava quase irreconhecível. Esses indivíduos estão presos, têm os corpos cobertos de tatuagens glorificando a nação ariana. O mais jovem que colaborou com a polícia, declarou que os outros lhe tinham dito que 'queriam realizar 'O Diário de Turner', romance racista de grande sucesso. Entretanto, os habitantes de Jasper declararam-se estupefactos com o acontecimento e disseram ignorar que a Ku Klux Klan tivesse actividade naquelas paragens.
Paralelamente, num bairro de Nova Iorque, que há 9 anos havia assassinado um negro, Yusef Hawkins, por ele ter penetrado num bairro branco, foi libertado e recebido como herói com fanfarra e tudo.
Pergunto-me: podemos imaginar o actual cinema americano a ser capaz de nos dar com justeza o sentido da dignidade reduzida a pó nestes dois acontecimentos? Mas por que será que esta pergunta é importante? Será que esta ideia é apenas ditada pelo meu amor ao cinema? Creio sinceramente que não.
A destruição detalhada, de grandes edifícios ou monumentos visível em 'Independence Day', 'Deep Impact', 'Armageddon' e ao que parece no último sucesso aí prestes a rebentar 'Godzilla' é outra vertente da exploração pelo cinema do assassino em série: é talvez onde está o cume da passividade do espectador.

Paulo Teixeira de Sousa


  
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Edição:

N.º 71
Ano 7, Setembro 1998

Autoria:

Paulo Teixeira de Sousa
Escola Secundária Especializada de Ensino Artístico de Soares dos Reis, Porto
Paulo Teixeira de Sousa
Escola Secundária Especializada de Ensino Artístico de Soares dos Reis, Porto

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