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À espera de... Rosseau

A Profedições fez editar a obra 'Orgulhosamente filhos de Rosseau'. É um livro que se caracteriza pela transparência das suas poucas palavras despidas de exageros de adjectivação, quase alheias ao jargão científico e a eufemismos que têm contaminado (e esvaziado) muito do que se tem escrito em ciências da educação. Sem cair na tentação do panfletarismo, este livro diz o que é preciso, quando é preciso.
Vale, sobretudo, como exercício de coragem. É um trabalho tragicamente oportuno, que aborda um tema recorrente, sujeito a breves euforias e a longas hibernações. É um trabalho que afirma, contrariando o que o senso comum apregoa, que as ciências da educação têm tido, infelizmente, pouco impacto sobre o sistema de ensino.

Das origens

No Inverno de 1997, a Educação tomou súbita visibilidade pública por mérito de Filomena Mónica. Esta autora dirigiu violentos ataques ao rosseauianismo, que (na sua abalizada opinião) estaria a minar o sistema educativo. O malvado do Rosseau agiria a coberto de uma cultura dominante inculcada nos cursos de Ciências da Educação pelos seus herdeiros.
Logo após a filoménica denúncia, outros académicos e fazedores de opinião se revezaram, em coro, na busca dos culpados. Mas, tão subitamente como surgiu, a polémica foi dada como extinta. Se algo restou dessa meteórica euforia anatematizadora de Rosseau e seus perigosos sequazes, terá sido o reforço do senso comum que, infelizmente para a Escola, sobre a Escola já se vinha construindo.
Registe-se, a tempo, algumas (escassas) vozes dissonantes. Matias Alves, Santos Silva e Ademar Santos, por exemplo, reagiram aos argumentos (?) dos novos inquisidores e denunciaram ter a Educação caído, de uma maneira caótica, na praça pública.
'Praticamente, toda a gente é perita em educação', como referem Stephen Stoer e António Magalhães. Mas os autores advertem que' falar de uma maneira informada sobre educação é tão difícil como falar de arte moderna de uma maneira informada'. E criticam críticos literários (como Eduardo Prado Coelho, ou Pulido Valente) que escrevem sobre educação sem que dela possuam um conhecimento aprofundado. Muitos fazedores de opinião outorgam-se da competência de discorrer sobre o fenómeno educativo no mesmo nível de discurso que utilizam, por exemplo, em programas como Os Donos da Bola. alarve e impunemente, enxameiam os jornais de sub-produtos da ignorância e do amadorismo.
Mas a escrita de cordel sobre Educação não vive apenas desses disparates. Um ilustre cortejo de professores universitários não andará muito longe dos anteriores escribas na profundidade das análises que faz publicar. São académicos com lugar cativo nos órgãos de comunicação social que, num misto de ingenuidade (no que às ciências da educação concerne) e de cientificidade (que o seu estatuto académico lhes confere), mesclam lugares-comuns com frases de alto gabarito intelectual, numa mistura que provoca ainda maiores estragos quando se depara com leitores menos prevenidos.

Exemplos não faltam:

'É perturbante a linguagem dos lobbies. [Em eduquês?], o aluno já não ignora, tem «deficientes competências cognitivas», o professor já não ensina, é um «facilitador do processo de ensino-aprendizagem»'.
'Nunca tanto se estudou pedagogia e ciências da educação em Portugal e ao mesmo tempo os jovens portugueses saem cada vez menos preparados'. Estaremos todos a ver, claramente vista, a relação causa-efeito...
'Não tenho conhecimento empírico, mas a minha opinião é de que hoje se aprende menos e pior. Não tenho provas, mas estou convencido!' 'A culpa é das novas pedagogia e das modernices. A solução é mais exames'.
E um eminente professor catedrático da Universidade de Coimbra e membro do Conselho Nacional de Educação brinda-nos com esta confrangedora pérola: 'Face ao caos, é preciso incitar os professores a exporem a matéria como manda o bom senso (...) mantendo os alunos atentos através de um varrimento de olhar tal que cada aluno saiba que o professor está a olhar para ele, desencorajando interrupções'
A moral da história é dada por Piaget que, premonitoriamente, um dia escreveu que as ciências sociais têm 'o triste privilégio de tratar de matérias em que todos se julgam competentes'.

Desesperadamente procurando Rosseau...

Stoer e Magalhães apontam efeitos negativos de uma 'academia ancilosada e elitista', que despreza a pedagogia e acrescentam que 'as principais propostas das ciências de educação não penetraram no sistema, servindo somente de recurso à retórica de políticos e decisores'. Formulam uma pergunta que continua sem resposta: Quais são as escolas de ciências de educação a que Filomena Mónica se refere e que divulgam modas pedagógicas?
Eu acrescentaria: quais as escolas onde as ditas modas se praticam?
Ainda que perceba o carácter metafórico do título do livro agora editado, duvido de que Rosseau tenha deixado descendência. Não me refiro à sua extensa prole, deixada ao abandono na roda, como sabemos, mas à reivindicação de um título que sofreu a erosão do século XIX, durante o qual, o Rosseau pedagogo, praticamente, não existiu.
Os que, porventura, entendam que a figura do 'bom selvagem' não passa um mero recurso retórico no discurso de Rosseau, utilizado para colocar em relevo a necessidade de uma formação integral do indivíduo e para conferir significado político à educação, terão compreendido o potencial crítico e emancipatório da ruptura operada pelo rosseauianismo pedagógico. Mas quem ousar assumir-se como herdeiro só poderá aspirar a agir em estreitas e clandestinas margens.
Em 1988, Filomena Mónica dizia numa entrevista: 'Não gosto de dizer mal do que ainda não nasceu'. Então, como se justifica que tivesse invectivado os herdeiros de Rosseau, se a escola portuguesa é ainda (apesar e contra o desenvolvimento das ciências da educação) pré-rousseauniana?
Na mesma entrevista, acrescentava que 'os portugueses não protestam, mas que protestar é possível'. Vemos agora o quanto foi útil a sua prosa e a dos seus prosélitos e quanta razão lhe assistia. Tanta, que foi contra concepções fósseis do fenómeno educativo que Stoer, Magalhães e outros autores protestaram.

José Pacheco


  
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Edição:

N.º 71
Ano 7, Setembro 1998

Autoria:

José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves
José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves

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