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Impasse na Educação na América Latina II

A Educação Numa Plataforma de Economia Solidária

Discutir seriamente educação na América Latina implica enfrentar o problema da educação das classes populares, constituída de indígenas, negros e mestiços. São os indígenas, que já estavam nas terras quando aqui chegaram os primeiros europeus, são os descendentes dos africanos, que para aqui foram trazidos como escravos pelos europeus, são os que descendem da miscigenação de europeus, indígenas e africanos. São estes que fracassam na escola, os mesmos que mais tarde irão fracassar na sociedade. A escola antecipa o fracasso social através do processo de selecção, rotulação, discriminação e exclusão, apesar do seu discurso democratizante. O fracasso escolar vem sendo o primeiro degrau da escalada para o fracasso social e para a manutenção do status quo.
Na verdade, a escola é uma instituição hegemonizada pela cultura branca, patriarcal, ocidental, cristã. Os professores e professoras são formados/as a partir desta lógica e tudo o que foge à lógica hegemônica é considerado irracional, crendice, ignorância.
Quando uma criança branca de classe média ou burguesa entra na escola, traz consigo o capital cultural indispensável para o sucesso escolar. Ela traz também a certeza de que terá sucesso na escola, pois esta é a expectativa de sua família, de seu grupo sócio-econômico-cultural, da sociedade global. O dito senso comum de que 'quem é bom já nasce feito' se aplica àqueles que já 'nascem feitos' por sua condição de classe, etnia e raça. Esta criança aprende a ler e a escrever e vai, no decorrer da sua escolaridade, aprendendo tudo aquilo que é necessário para que venha a se tornar dirigente, ou melhor dito, no imaginário da sociedade global, é aceito como natural que um filho de burguês aspire a se tornar dirigente e, efectivamente, a sua condição de classe, etnia e raça o prepara objectiva e subjectivamente para poder vir a sê-lo.

HOJE, UMA PROFESSORA BRASILEIRA DE ESCOLA FUNDAMENTAL RECEBE POR HORA DE TRABALHO MENOS DE TRÊS DÓLARES E, EM MUITAS REGIÕES, O SEU SALÁRIO MENSAL É MENOR DO QUE O SALÁRIO MÍNIMO OFICIAL.

Em contrapartida, a criança mestiça, negra ou indígena de classe popular, quando consegue entrar na escola, pois muitas delas sequer conseguem matrícula, já entra com o estigma do fracasso de sua classe social e de seu grupo sóciocultural. Entra humildemente, quase pedindo licença para entrar, pois nunca lhe disseram que este seria um direito seu. Aliás, ela já aprendera não ter direitos muito antes do momento de entrada na escola. A cada momento de sua vida, a sociedade vai lhe ensinando, especialmente através das relações de trabalho, e pela ideologia veiculada pela mídia, que 'manda quem pode e obedece quem tem juizo'. Quando vence o medo de um ambiente tão pouco acolhedor e tão diferente daquele em que vive, e ousa abrir a boca para falar, enfrenta a reacção da professora, que a corrige dizendo que ela fala errado. Frequentemente ela se cala e não mais fala. Aprende que a escola é um lugar de silêncio, em que só a professora deve e pode falar.
É interdito às crianças compartilhar as suas descobertas e dúvidas. No jargão escola isto é 'cola', o que provoca a punição das crianças e as faz sentirem-se culpadas. Ao simples compartilhar de conhecimentos, quando aquele que já sabe ensina a quem ainda não sabe, é dada uma conotação moral, o que sobretudo para crianças de classes populares é impossível compreender, pois uma das formas de sobrevivência entre elas é exactamente a solidariedade. Não é preciso dizer que, quando assim o faz, a escola ignora o que Vygotski denomina zonas de desenvolvimento proximal, deixando de contribuir para que as crianças façam hoje, ajudadas pelos/as colegas que já sabem, o que amanhã poderão fazer sozinhas, tornando-se mais autônomas intelectualmente. Ainda que não houvesse a pesquisa de Vygotski, que coisa terrível que a curiosidade e a generosidade sejam punidas, pois a criança que pergunta à colega que sabe o que ela ainda não sabe está mostrando querer saber, ter curiosidade por saber o que ainda não sabe, enquanto a criança que ensina à outra que lhe pergunta está generosamente compartilhando o seu conhecimento. Será que a interdição e punição a esta troca de saberes se deve à competição, valor tão caro ao capitalismo?
A professora, única que tem o direito à palavra na escola, fala de coisas diferentes numa 'língua diferente', ensina muita coisa, mas não ensina para que servem 'aquelas coisas'. É por isso que tantas crianças passam pela escolaridade de oito anos, que é obrigatória no Brasil embora a obrigatoriedade não seja atendida, sem chegarem a compreender a própria razão de ser da escola.
Algumas crianças vão à escola apenas para comer, pois as escolas oferecem merenda para todas as crianças das escolas públicas. Aliás, no Brasil, a propaganda oficial televisiva vem reforçando a idéia da merenda como atractivo escolar, ao mostrar um belo prato de comida, dizendo em voice off:
'Criança que vai à escola, tem de comer'.
Será que só precisa comer, a criança que tem o privilégio de ir à escola?
Será que numa sociedade decente, uma criança que fica apenas quatro horas na escola, precisaria comer um prato de comida? No Brasil, e na América Latina de um modo geral, precisa, porque as crianças não têm o que comer em suas pobres casas, apesar do presidente brasileiro ter anunciado orgulhoso que 'os pobres agora podem comer frango e iogurte no Brasil'. Naturalmente, ele não se referia aos 40 milhões de miseráveis que parecem não incomodá-lo.
Ao invés de fazer propaganda do que diz estar sendo feito pelo governo (para isto são gastas verbas altíssimas pelo governo), a televisão deveria estar sendo usada para educar o povo, para mostrar a importância da escola e do que nela se ensina ou deveria ser ensinado, para mostrar porque é tão importante aprender a ler e a escrever, para ensinar aos pais e às crianças e jovens a função social da escrita, o que nem sempre a escola sabe ensinar. Talvez, se a propaganda oficial mostrasse adultos e crianças em situação de uso da linguagem escrita, as crianças estariam mais interessadas em aprender a ler e a escrever e, desejando aprender, o fizessem efectivamente. Pois, todos sabemos que só se aprende aquilo que tem sentido para nós, aquilo em que está posto o nosso desejo, aquilo que tem valor para nós.
Em nossa pesquisa, perguntando às crianças se consideravam importante a escola e porque lhes parecia importante aprender a ler e a escrever, ouvimos de mais de uma criança:
'Pra fazer dever, ué!'
Quando as crianças não compreendem sequer a importância de aprender a ler e a escrever, dificilmente chegarão a compreender o valor do conhecimento. Não terão, por conseguinte, qualquer razão para aprender o que a escola afirma ser tão importante, embora não consiga explicar a razão da importância apregoada.
No entanto, todas as teorias pedagógicas nos dizem ser no início da escolaridade que as crianças aprendem a aprender e aprendem sobretudo o sentido e o prazer de conhecer. Como podem chegar a descobrir o sentido do conhecimento e o prazer de aprender, quem fracassa na primeira tentativa, que é a alfabetização? Como pode chegar a aprender quem não vê sentido no que insistem em lhe ensinar?
O problema do analfabetismo é um dos mais graves problemas que enfrenta a América Latina, especialmente num país como o Brasil. Segundo as estatísticas oficiais, mais de 20% da população brasileira é constituída de analfabetos. É preciso dizer que no Brasil é considerado alfabetizado quem apenas desenha o seu nome.
E quem são os analfabetos? No Brasil, na América Latina e em todas as partes do mundo, os analfabetos são sempre filhos de analfabetos ou semi-analfabetos., filhos daqueles que, ou jamais foram à escola, ou na escola, ao invés de aprenderem a ler, escrever e contar (pelo menos), aprenderam serem incapazes de aprender. São, em suma, filhos e filhas, irmãos e irmãs dos que fracassaram na escola e que na escola aprenderam ser sua a responsabilidade por seu próprio fracasso.
Quantas vezes, em minha história de professora alfabetizadora, me deparei, no primeiro dia de aula, com a ansiedade da mãe que me implorava:

'Puxa pela minha filha, para ver se esta aprende, pois tudo é cabeça dura lá em casa'.
Será que uma criança que cresce ouvindo que 'tudo é cabeça dura lá em casa' consegue superar a avaliação da própria mãe de que todos os seus filhos e filhas são incapazes de aprender, e consegue aprender, rompendo o estigma do fracasso escolar de sua família? Será que alguém consegue se perceber como capaz de aprender quando sua própria mãe afirma que ela só aprenderá se a professora 'puxar por ela', mostrando descrer da capacidade de sua filha para aprender? Na avaliação da mãe, só uma professora muito competente (e competência para ela é puxar por sua filha) conseguirá que de uma família de gente pouco inteligente, 'cabeça dura', alguém aprenda. A própria imagem de 'puxar' é significativa: é assim como quem puxa um asno que empaca e não sai do lugar. Para que o asno que empaca saia do lugar, se mova e ande para a frente, é preciso que alguém o puxe. Este é o papel que a mãe espera da professora - que ela puxe por sua filha, que empacou como o asno da metáfora.
Todos sabemos da importância dos primeiros anos de escolaridade. É aí que se instala a semente da futura relação com o conhecimento e com o mundo, onde se incluem as pessoas, os grupos, a sociedade global e a natureza. É ali que uma acção pedagógica competente porque comprometida com a mudança provoca 'a paixão de conhecer o mundo' e a paixão pelo mundo. Aqueles e aquelas que se formam nesta escola se tornarão cidadãos e cidadãs conscientes e comprometidos/as com a construção de um mundo melhor. Ali, se estará construindo, portanto, uma cidadania consciente e comprometida com o colectivo. No entanto, quando a acção pedagógica está vinculada a um projecto excludente como o neoliberal, na escola se constrói a subalternidade consentida ou inconsciente de um lado (o lado das classes populares) e, de outro, o individualismo possessivo, competitivo e consumista (o lado dos que detêm o poder).
A escola, ainda que se apresente como neutra, é um espaço de luta por hegemonia, em que os interesses hegemônicos fazem por dificultar, senão impedir, a criação de uma escola de qualidade para as crianças e jovens das classes populares, mas onde, os interesses contra-hegemônicos lutam por instalar uma discussão política sobre o papel da escola e da cultura no movimento emancipatório do qual participam aqueles e aquelas que foram historicamente subalternizados e hegemonizados.
Rediscutir o papel da escola, numa perspectiva emancipatória, nos leva a retornar a Gramsci em sua preocupação de que 'a tendência democrática, intrinsecamente, não pode consistir apenas em que um operário manual se torne qualificado, mas em que cada 'cidadão' possa se tornar 'governante', e que a sociedade o coloque, ainda que 'abstractamente' nas condições gerais de poder fazê-lo'.
Aí estava delineado o papel de uma escola democrática no tempo de Gramsci, sonho que se mantém até hoje como sonho, pois nas sociedades latino-americanas, este ideal está longe de ter sido transformado em realidade.

A ESCOLA ANTECIPA O FRACASSO SOCIAL ATRAVÉS DO PROCESSO DE SELECÇÃO, ROTULAÇÃO, DISCRIMINAÇÃO E EXCLUSÃO, APESAR DE SEU DISCURSO DEMOCRATIZANTE. O FRACASSO ESCOLAR VEM SENDO O PRIMEIRO DEGRAU DA ESCALADA PARA O FRACASSO SOCIAL E PARA A MANUTENÇÃO DO STATU QUO.

O que temos hoje é uma escola que prepara uns, uma minoria, para posições de mando, e outros, a maioria, para o papel subalterno, que a sua situação de classe, de raça e etnia lhes anuncia. Assim foi, assim continua sendo, e assim persistirá a educação na América Latina, se não houver um forte movimento da sociedade em defesa da escola pública, gratuita, obrigatória e de qualidade para os que até então foram excluídos da escola e na escola.
As classes hegemônicas sempre souberam o perigo potencial da educação, quando os explorados e dominados pudessem adquirir as armas intelectuais para compreender a sua situação e com estas armas se organizarem e lutarem por sua libertação de um jugo que os impede de se desenvolver, crescer e se levantar para lutar por seus interesses historicamente negados.
O que parece óbvio na actual conjuntura internacional é que o papel destinado à América Latina na divisão internacional do poder não é de produzir conhecimento de ponta, o que a tornaria um perigo latente para a forma em que está organizado o mercado mundial. Se a América Latina se insurgir contra a ordem estabelecida, pode ameaçar o 'equilíbrio', o que não interessa aos que definem o que seria equilíbrio na actual conjuntura.
Enquanto os que detêm o poder no mundo conseguirem impedir que toda a população latino-americana se eduque, aqueles e aquelas que se mostrarem mais talentosos e capazes de produzir inovações científicas e tecnológicas serão puxados para o Primeiro Mundo, onde encontrarão não só melhores condições de trabalho como receberão melhores salários do que qualquer pesquisador na América Latina. Assim sempre aconteceu no mundo. Os países ricos e poderosos atraíam os que se destacavam nos países colonizados para que os conhecimentos por eles produzidos fossem colocados ao serviço da consolidação da hegemonia dos vencedores.
É por isso que, apesar do discurso da necessidade de uma profunda reforma do sistema educativo proferido pelo Banco Mundial, a pergunta que se coloca é: interessa aos senhores da globalização que os 200 milhões de jovens latino-americanos tenham uma boa e completa educação básica?
O modelo excludente só necessita de poucos, como já sabemos. Os demais só precisam ser adestrados para bem se comportarem, mantendo-se dóceis à dominação. E para isto, nada melhor do que a televisão. Sentados e vendo televisão, na escola e em suas casas, irão aprendendo a disciplina, a obediência, o conformismo, bem como os valores da sociedade neo-liberal - o individualismo, a competição, o consumismo. Aprendem que a violência é direito dos fortes, que o sucesso é decorrência da competência e do esforço, que a beleza é privilégio dos homens e mulheres brancos de origem européia, que a riqueza material é um bem acessível a qualquer um/uma que tenha capacidade. As desigualdades e discriminações sociais vão sendo naturalizadas pelas novelas, pelos noticiários, pelos filmes importados, pelos padrões apresentados.

O DITO DO SENSO COMUM DE QUE 'QUEM É BOM JÁ NASCE FEITO' SE APLICA ÀQUELES QUE JÁ 'NASCEM FEITOS' POR SUA CONDIÇÃO DE CLASSE, ETNIA E RAÇA.
A CRIANÇA MESTIÇA, NEGRA OU INDÍGENA DE CLASSE POPULAR, QUANDO CONSEGUE ENTRAR NA ESCOLA, POIS MUITAS DELAS SEQUER CONSEGUEM MATRÍCULA, JÁ ENTRA COM O ESTIGMA DO FRACASSO DE SUA CLASSE SOCIAL E DE SEU GRUPO SÓCIO- CULTURAL.

Este é o quadro conveniente aos que detêm e querem manter o poder. O desafio que se coloca para os inconformados com o status quo é - o que é possível fazer na escola quando se luta para reverter este quadro desolador? O que fazer quando se está comprometido com um projecto emancipatório para a América Latina?

Regina Leite Garcia

- Professora Titular em Alfabetização na Universidade Federal Fluminense.

Nota:

A primeira parte deste trabalho foi publicada na edição de janeiro enquanto que uma III Parte ('Um Projecto Educacional Emancipatório Para a América Latina'), será publicada na edição de Março.
À Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE) e à Revista PROPOSTA agradecemos a disponibilidade na permuta de textos.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 65
Ano 7, Fevereiro 1998

Autoria:

Regina Leite Garcia
Univ. Federal Fluminense, Rio de Janeiro, Brasil
Regina Leite Garcia
Univ. Federal Fluminense, Rio de Janeiro, Brasil

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