Ensino superior vive situação insustentável
Os reitores andam descontentes com o Governo e já o disseram publicamente por várias vezes. O principal motivo para o descontentamento deve-se aos cortes orçamentais que estes responsáveis dizem pôr em causa o funcionamento presente e a sobrevivência futura das universidades. O ministro da Ciência Tecnologia e Ensino Superior, Mariano Gago, afirma o contrário e diz que a dotação orçamental destinada ao seu ministério cresceu relativamente ao ano anterior. Mas esse facto não desmente os vários responsáveis do ensino superior, politécnicos incluídos. Nos últimos dois anos, Portugal foi o único país europeu a reduzir o investimento no ensino superior. O Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas (CRUP) e o Conselho Coordenador dos Institutos Superiores Politécnicos (CCISP) apresentaram recentemente números no Parlamento que comprovam isso mesmo, traçando um cenário onde dão conta que até ao final de 2009 poderá haver cerca de quinze universidades em ruptura financeira e que as actuais verbas dos politécnicos permitem apenas suportar 82 por cento da massa salarial. No discurso de abertura do ano académico, em Novembro passado, o reitor da Universidade de Lisboa, António Nóvoa, acusou a "nova gestão pública" de "mergulhar as instituições numa interminável burocracia". Ao mesmo tempo que se referia à necessidade de as universidades terem de justificar cada cêntimo das suas despesas, criticou o facto de se "desculparem os milhões que se têm desbaratado com a complacência dos mesmos que tão críticos se revelam para as universidades". "Portugal tem de decidir de uma vez por todas se quer ou não ter grandes universidades e instituições de referência no espaço europeu de ensino superior. Ou se prefere ter umas instituições remediadas, sofríveis, mais parecidas com escolas secundárias do que com universidades do conhecimento e da ciência", afirmou. Criticando a "inutilidade de uma reforma orgânica e burocrática que não mudou nada do que era fundamental mudar", Nóvoa referiu-se à necessidade de reorganizar a actual rede de ensino superior, de alterar o Estatuto da Carreira Docente Universitária e de repensar o modelo de financiamento do ensino superior. Sobre isto, sublinhou, "nada se fez em quatro anos de Governo". E foi mesmo mais longe, afirmando que "a estratégia da arrogância e do medo, do controlo e da ameaça poderá ter sucesso a curto prazo mas destruirá por muitos anos as forças vivas que existem nas universidades".
Seabra dos Santos desmente Mariano Gago
Também nesse mês, o presidente do Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas, Seabra dos Santos, havia destacado o esforço das universidades no sentido de ultrapassar os cortes orçamentais dos últimos anos, respondendo desta forma às afirmações do ministro Mariano Gago que havia acusado as universidades públicas de terem maus gestores. "Ou corrigem essa atitude ou serão substituídos", afirmou na altura o ministro. Contrariando esta ideia, o presidente do CRUP reafirmou que os reitores já por diversas vezes apresentaram números mostrando que os problemas de financiamento que afectam as universidades decorrem exclusivamente da diminuição do financiamento público desde 2005, com cortes que chegam a atingir 16 por cento do PIB das universidades. O também reitor da Universidade de Coimbra pede que às universidades seja concedido "apenas o necessário para que tenham um orçamento compatível com as respectivas necessidades" ao nível de 2005. Em declarações à comunicação social, Seabra dos Santos explicou que "nos últimos três anos verificou-se uma diminuição de 20 por cento dos orçamentos reais, tendo as universidades recorrido a saldos de gerência". Porém, "estes saldos deixaram de existir e as universidades, uma após a outra, estão a entrar em ruptura financeira". Embora mais contido nas críticas, o reitor da Universidade do Porto, Marques dos Santos, já sugeriu que uma das possíveis soluções para a crise financeira que afecta as instituições de ensino superior universitário poderá passar pela "fusão entre universidades". Insistindo na necessidade de racionalização da actual rede - para a qual citou o exemplo da Catalunha, onde oito instituições se agruparam com o objectivo de reduzir custos e optimizar recursos ? aquele responsável veio sugerir a redução de 28 para 14 universidades no país. Apesar de criticar o actual modelo de financiamento para o sector, Marques dos Santos afirmou que a resolução dos problemas do ensino superior passa igualmente por uma "melhor gestão das instituições", citando o exemplo da própria UP, onde, apesar do aumento das despesas, se verificou um aumento de 19 por cento das receitas próprias. Apesar de todas as dificuldades que vivem, as universidades portuguesas conseguem, ainda assim, um bom desempenho no seio da OCDE. Pelo menos a avaliar por um recente relatório intitulado "Ranking de sistemas universitários: cidadãos e sociedade na era do conhecimento", elaborado por três especialistas do Lisbon Council, um centro de estudos sobre assuntos europeus sediado em Bruxelas, que posiciona Portugal em oitavo lugar no ranking sobre a eficácia do ensino superior em 17 países da OCDE. O estudo cruza dados como a relação entre o número de estudantes formados e a população em idade de estudar, as competências das formações e a sua adaptação às necessidades do mercado de trabalho, a capacidade de mudança e de adaptação ao sistema, a atracção de estudantes estrangeiros e o contributo das instituições de ensino superior para a aprendizagem ao longo da vida. A lista é encabeçada pela Austrália, Reino Unido e Dinamarca, numa tabela onde a Espanha ocupa o último lugar e é seguida de perto pela Áustria e Alemanha.
Politécnicos defendem racionalização da rede
Embora sem a mesma visibilidade mediática das universidades, o ensino superior politécnico vive igualmente momentos difíceis e junta-se aos reitores nas críticas à política seguida pelo actual Governo. Em declarações à PÁGINA, o presidente do Instituto Politécnico de Leiria (IPL) e também responsável máximo pelo CCISP, Luciano de Almeida, queixa-se de que a instituição que dirige tem vindo a ser penalizada em termos de financiamento desde 2001, em consequência da aplicação do chamado "factor de coesão". Em resultado desse mecanismo, diz, "o IPL é, em 2008, a instituição de ensino superior público com menor financiamento por aluno", não obstante os alunos nas formações das áreas da saúde, artes e engenharia terem um peso muito significativo. Em virtude desta situação, o IPL viu-se obrigado a reforçar a componente de receitas próprias, que, representando actualmente 40 por cento do seu orçamento, em 2001 não chegava aos 10 por cento. Tal conjuntura, explica, "compromete o desenvolvimento estratégico da instituição" na medida em que dificulta o investimento na qualificação do corpo docente" e a intervenção em áreas que o IPL havia definido como áreas estratégicas, como a prestação de serviços à comunidade, o envolvimento em projectos de investigação aplicada e de transferência e valorização económica do conhecimento. Impediu ainda, de "forma significativa", o recrutamento de docentes titulares do grau de doutor. Fazendo uma análise mais geral, este responsável refere ainda que não pode haver autonomia sem um orçamento que permita às instituições o desenvolvimento adequado da sua actividade. "A autonomia também implica dispor de um orçamento próprio, de receitas adequadas para responder pelas despesas necessárias ao desenvolvimento da actividade das instituições e de capacidade para decidir da sua melhor utilização em razão da missão das instituições". Na sua ausência, diz Luciano de Almeida, "não é possível falar-se em autonomia". Perante o quadro que se vive, que soluções adoptar? "Na minha opinião, o orçamento das instituições deve ser o adequado ao normal desenvolvimento da sua actividade, devendo naturalmente serem avaliados os resultados", processo que deve passar por uma auditoria externa às instituições que determine qual o orçamento necessário à actividade por elas desenvolvida e à que se propõem desenvolver. Luciano de Almeida é também da opinião de que a rede pública carece de "racionalização" e de que ela é possível, "com vantagens para o serviço público que as instituições prestam, libertando recursos que permitam um financiamento adequado do ensino superior sem um esforço acrescido dos portugueses".
Sindicatos e professores igualmente descontentes
E não são apenas os responsáveis pelas universidades e politécnicos que se mostram descontentes com o actual rumo do ministério de Mariano Gago. A eles juntam-se também os sindicatos e os professores. Na última reunião que manteve com o ministro, realizada a 24 de Novembro em Lisboa, a Fenprof mostrou-se satisfeita com a postura negocial manifestada pela tutela mas acusa Gago de deixar apenas uma porta aberta à discussão da avaliação e de recusar a negociação dos vínculos à Função Pública, que a organização considera ser de importância vital. O responsável pelo departamento de Ensino Superior da Fenprof, João Cunha Serra, afirmou à LUSA, após o encontro, que, embora não se tivessem verificado sinais visíveis de avanço nas negociações, houve o "reconhecimento e a aceitação" por parte do ministério da necessidade de a carreira docente no ensino superior ter regras específicas e não as gerais aplicáveis à Função Pública. "Quer a avaliação de desempenho e a progressão por escalões a que está associada, quer a transição dos vínculos, vão ser reguladas por parte do ministério e negociadas connosco", afirmou o dirigente sindical. João Cunha e Serra adiantou ainda esperar uma resposta da tutela para algumas das questões que a Fenprof havia já colocado, nomeadamente se a transição dos vínculos se irá verificar já a 1 de Janeiro do próximo ano ou se será implementada apenas na altura da revisão das carreiras. Carlos Silva, coordenador do Departamento de Ensino Superior do Sindicato dos Professores do Norte e que integra também o departamento de Ensino Superior da Fenprof, afirmou à PÁGINA considerar positivo que o ministro tenha quebrado o silêncio a que se tinha remetido durante os últimos meses. Mas contesta as afirmações do ministro face a uma outra matéria também cara às instituições de ensino superior: o aumento da dotação orçamental anunciada por Mariano Gago para o sector. "Apesar do aumento absoluto do orçamento destinado ao MCTES, em termos relativos ele baixa a partir do momento em que entram em conta os encargos com a caixa Geral de Aposentações e outras despesas das instituições. No cômputo global as instituições do ensino superior acabam por ficar em maiores dificuldades do que acontecia anteriormente. Não é por acaso que a generalidade dos reitores se queixa do mesmo e que um grupo de ex-reitores tenha sido unânime em afirmar que não era sustentável o sub-financiamento do ensino superior, considerando-o como um ataque à própria autonomia universitária", explica Carlos Silva.
"Uma política baseada na ausência de política"
"O ensino superior está a assistir a um conjunto vasto de mudanças, sobre algumas das quais ainda se desconhece o verdadeiro impacto para o futuro da profissão e das instituições, que não estão a ser alvo do debate e da negociação que mereciam", diz Fátima Antunes, da Universidade do Minho (UM). Uma das consequências mais visíveis deste gradual processo de mudança diz respeito ao momento de grande dificuldade financeira que as universidades atravessam, que, na opinião desta docente, "expressa bem aquilo que é a actual política do Governo para o ensino superior, com alguns traços de falta de transparência, alguma arbitrariedade e, de certa forma, alguns limites à autonomia das instituições". Mas é sobretudo ao nível profissional que as mudanças podem trazer maiores prejuízos. Beneficiando do estatuto de nomeação definitiva, Fátima Antunes admite não se sentir particularmente melindrada com a sua situação futura. O mesmo não pode afirmar acerca dos muitos colegas, dentro e fora do seu local de trabalho, cuja transição de vínculo não está a ser devidamente acautelada. "Os sindicatos têm vindo a chamar a atenção para esta situação desde há bastante tempo, mas como sabemos não tem havido abertura por parte do ministério para negociar esta questão". Paradoxalmente, e contrariando o clima de insegurança e precariedade laboral que se vive e o que certamente se avizinha, esta investigadora considera que não existe uma "reacção à altura" do que seria de esperar desta categoria profissional. "Apesar de não poder generalizar a minha opinião, sinto que se verifica uma certa apatia, quer em termos reivindicativos quer na assiduidade do acompanhamento destas mudanças, quer mesmo na mobilização para o debate. Há um certo receio mas também alguma distância, como se as pessoas tivessem alguma dificuldade em reconhecer que estas questões lhes tocam mais de perto do que elas querem realmente admitir". Uma desmobilização que não passa igualmente despercebida a Manuel António Silva, também ele docente da UM, exemplificada com uma recente reunião que decorreu nas instalações daquela universidade que, segundo o próprio, não contou com mais de duas dezenas de participantes. "As pessoas não estão atentas relativamente ao que está a ocorrer e para as consequências que podem advir deste processo. Julgam, por certo, que nada de muito grave se irá passar e que, de uma maneira ou outra, os problemas se irão resolver. Eu, porém, duvido muito disso". Considerando que existe uma substancial ausência de debate sobre estas matérias, nomeadamente sobre o Estatuto da Carreira Docente, este professor e investigador considera que tal se deverá sobretudo à falta de informação. "O que se sabe é que iremos ser avaliados, progredir na carreira e ser regulados pelo regime geral da Função Pública. Isso implica que os nossos contratos sejam automaticamente alterados para contratos por tempo indeterminado e, nessas condições, não sabemos quais as consequências que daí poderão advir. Em última análise ficaríamos na mão do empregador...", explica. ?"Mesmo aqueles que têm contrato por nomeação definitiva não sabem se o contrato irá ou não ser alterado, passando também, nesse caso, a serem regidos por um contrato por tempo indeterminado. No fundo, é uma tentativa de precarizar ainda mais a situação já de si precária da maior parte dos docentes do ensino superior."
Universitário e politécnico: distinção de carreiras diferentes não faz sentido
A esta precarização de carácter profissional há que acrescentar o total desinvestimento que tem atingido o processo de ensino-aprendizagem - afinal "a essência do ensino superior" ? em detrimento do investimento na ciência. "A ciência é apenas uma das dimensões do nosso trabalho. Investir apenas na ciência é uma espécie de presente envenenado, porque a articulação que habitualmente existe entre investigação e ensino deixa de ter lugar", diz Manuel António Silva. A este problema junta-se a falta de investimento na renovação do corpo docente universitário, implicando que, num prazo de dez anos, os departamentos possam ficar sem massa crítica, o que constitui, na sua opinião, "uma séria ameaça a toda a estrutura que fomos criando ao longo dos últimos vinte anos". Razões suficientes para se mostrar "muito pessimista em relação ao futuro" do sector. "O problema do ensino superior em Portugal é que não tem havido política. A política, no fundo, traduz-se numa ausência de política. Nos últimos quatro anos não houve uma única medida concreta em relação ao este sector a não ser descapitalizá-lo em detrimento da aposta na ciência, retirando-lhe verbas de funcionamento, diminuindo a sua autonomia e a sua capacidade de criar novos projectos de ensino", afirma. Uma política orçamental de redução do investimento no ensino superior que ameaça transferir gradualmente os custos para os próprios utentes, isto é, que passem a ser os alunos a financiar o sistema. Os docentes do ensino politécnico encontram-se imersos nas mesmas incertezas. É o caso de Raul Medina Pinheiro, professor do Instituto Superior de Engenharia do Porto, que, à semelhança da esmagadora maioria dos colegas, ainda não sabe ao certo que tipo de vínculo lhe reserva a nova legislação. "Tanto podemos ficar abrangidos por um contrato a termo como a um contrato sem termo mas sujeito a um período experimental. Fundamentalmente, tudo dependerá da ordem pela qual se discutirem as matérias, isto é, se se discutir prioritariamente a carreira, tal como propõe a Fenprof, mais facilmente se conseguirá que os contratos passem a termo incerto com um período experimental". Caso contrário, adianta Pinheiro, fazendo a transição dos vínculos sem que essa revisão da carreira tenha sido feita, "o mais provável é existirem directivas para que os docentes com contrato administrativo de provimento, que constituem a maioria do corpo docente, passem a contrato com termo". Salientando a situação de grande precariedade vivida no ensino superior politécnico, este docente considera-a particularmente injusta quando comparada com a carreira universitária, já que se as funções são igualmente exigentes a diferença salarial entre as duas é significativa. "Com a dificuldade acrescida de haver uma muito menor percentagem de lugares no quadro face às necessidades das instituições, situação que limita a nossa autonomia, quer a nível pedagógico quer científico, e mesmo a nossa actuação em termos sindicais". Apesar de existirem diferenças na lei que traçam a distinção entre uma e outra carreira, na opinião de Raúl Pinheiro "nada justifica a diferença de estatuto e de vencimento". Se até certa altura ela se compreendia, diz, "hoje em dia a diferença é praticamente nula". Há, por isso, na sua opinião, uma "violação do princípio de salário igual por trabalho igual". Quanto à escassez de financiamento das instituições e à forma como ele pode determinar o futuro deste sector, diz não temer pela sobrevivência de escolas como o ISEP mas antes pelas congéneres no interior do país. "O risco de encerramento de alguns politécnicos é bem real, sobretudo aqueles que registam uma menor procura", afirma.
Ricardo Jorge Costa
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