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LACRIMAE RERUM

Às vezes este país dá-nos boas surpresas! Foi editado recentemente um livro do filósofo esloveno - leram bem, esloveno - Slavoj Zizek sobre cinema. O livro, da editora Orfeu Negro, é um conjunto de quatro textos sobre Krziystof Kieslowski, Alfred Hitchcock, Andrei Tarkovski e David Lynch, em que Zizek, a propósito dos filmes, fala de tudo, desde Física Quântica até à psicanálise, passando pela Bíblia e Kant. No mínimo, uma leitura estimulante.
Na introdução ao artigo sobre Lynch, intitulado A Arte do Sublime Ridículo, fala sobre a cena de Casablanca em que Ilse (Ingrid Bergman) vai ao quarto de Rick (Bogart) para tentar obter os salvo-condutos que permitirão, a si e ao seu marido, fugir de Casablanca para Portugal, e daí para os Estados Unidos. Não resisto a citá-lo como aperitivo para a leitura do livro: " Rick recusa-se a dar-lhos e ela puxa de uma pistola e ameaça-o. Ele riposta: "Vá dispara, é um favor que me fazes!". Ela vai-se abaixo e, coberta de lágrimas, começa a contar-lhe por que razão o deixou em Paris. Quando lhe está a dizer "Se soubesses como te amava, como ainda te amo" eles estão abraçar-se num grande plano. A sequência é interrompida por um fundido encadeado que abre para um plano de 3,5 segundos, da torre do aeroporto à noite, com os projectores a varrer o céu, a que se segue outro fundido que nos traz de novo para um plano filmado do exterior da janela do quarto de Rick, onde este está de pé a olhar para fora e a fumar um cigarro. Volta-se para o interior do quarto e diz "E depois?". E ela continua a história?
A pergunta que surge aqui imediatamente é a seguinte: o que aconteceu entrementes, durante o plano de 3,5 segundos do aeroporto - fizeram-no ou não? Maltby (1) tem razão quando afirma que, quanto a isto, o filme não é simplesmente ambíguo: ele indica duas coisas muito claras, embora não se excluam mutuamente ? fizeram-no e não o fizeram, ou seja, o filme oferece sinais evidentes de que o fizeram, e simultaneamente sinais evidentes de que não o podiam ter feito. Por um lado, uma série de sinais codificados sugere que o fizeram, isto é, que o plano de 3,5 segundos representa um período de tempo mais longo (o fundido do par que se abraça apaixonadamente, que simboliza geralmente que o acto vai seguir-se ao desaparecimento da imagem; o cigarro posterior, que constitui também um sinal clássico do relaxamento após o acto" e mesmo a conotação fálica ordinária da torre). Por outro lado, uma série de sinais paralelos indica que não o fizeram, isto é, que o plano de 3,5 segundos da torre do aeroporto corresponde ao tempo diegético real (a cama por trás não está revolvida, a conversa entre eles parece prosseguir sem interrupções, etc.) Mesmo quando, no diálogo final entre Rick e Laszlo no aeroporto, eles afloram directamente os acontecimentos dessa noite, as suas palavras podem ser interpretadas das duas maneiras. (?)
A solução de Maltby é insistir em que esta cena é um bom exemplo de como Casablanca "se constrói deliberadamente de modo a oferecer fontes de prazer distintas e alternativas a duas pessoas que se sentam uma ao lado da outra no cinema", ou seja, que "pode tocar um público "ingénuo" do mesmo modo que um "sofisticado".
Espero que este pequeno excerto vos faça, pelo menos, sentir curiosidade de conhecer o final ? Garanto-vos que o livro é imperdível ?

(1) Zizek cita Post-Theory, de Richard Maltby

Paulo Teixeira de Sousa


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 182
Ano 17, Outubro 2008

Autoria:

Paulo Teixeira de Sousa
Escola Secundária Especializada de Ensino Artístico de Soares dos Reis, Porto
Paulo Teixeira de Sousa
Escola Secundária Especializada de Ensino Artístico de Soares dos Reis, Porto

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