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Circo: aula de vida

Trabalhei nos três turnos em uma escola da rede estadual na cidade de Teresópolis no período de 1998 a 2006 e mantive um carinho todo especial pelos alunos do 3º turno. As dificuldades encontradas por muitos deles para levar seus estudos adiante, além de um currículo baseado na realidade daqueles que estudam pela manhã ou à tarde, acabaram deixando esse grupo à margem, criando até um constrangimento, pode-se dizer. Procurava conversar com meus alunos. Mais velhos que os demais, os alunos da noite me ensinaram muito mais do que eu a eles. Sempre quis retribuir tanto ensinamento.
Paulo Freire (1996) deixa claro que a escola tem como uma de suas funções, a de transformação. Será que nossos jovens e adultos matriculados em escolas noturnas saem realmente transformados e conscientes de seu papel social?
A escola à noite era diferente, mas o diferente nem sempre é bem visto. Na porta havia música, bate-papo e uma vida em ebulição. Em cidade pequena, sem movimento, ir à escola é um acontecimento. O uniforme não é necessário no 3º turno, então suas roupas sempre buscam a moda. Cabelos estão sempre arrumados. Diferentes perfumes flutuam pelos corredores. Affonso Romano de Sant'Anna (2004) afirma que a porta de colégio é a porta da vida. E o poeta está certo. Pena que tanta vida fica esquecida quando começam as aulas.
Não posso reclamar de meus alunos. Mas eles reclamavam muito, e de tudo. Eu procurava ouvi-los. Sentiam-se incompreendidos e sem voz. O que a escola fazia por eles? Portão fechado, aulas fechadas, alunos presos naquelas grades, ausência de alegria, que chegava a ser vista como falta de educação.
Um circo chegou à cidade e acomodou-se em um terreno próximo à escola. Perguntei a meus alunos se iriam, mas disseram que estava caro. Fiquei pensativa. No dia seguinte, procurei o responsável pelo circo e perguntei se faria algum desconto para alunos de escola pública. Ele disse que sim, caso eu garantisse um número mínimo de espectadores e o dinheiro adiantado. Fiz a propaganda. Fui de sala em sala ? não seria justo levar apenas meus alunos. Alguns professores ficaram aborrecidos comigo, pois atrapalharia conteúdos e provas. Não liguei. Comuniquei à direção que aprovou, desde que eu resolvesse tudo sozinha. Tudo bem. Os funcionários se animaram. Alguns alunos me procuravam perguntando se poderiam levar familiares. Disse que sim.
No dia marcado fazia um frio grande, mas o calor daquele movimento fez com que enfrentássemos a chuva fina que tornava a sensação térmica ainda mais baixa. Fiz o trajeto escola-circo diversas vezes, a pé, para garantir que todos tivessem seus ingressos em mãos antes da entrada. As aulas foram suspensas. Acompanhada de alguns funcionários, eu e quase 200 alunos fomos ao espetáculo.
A prática comum das escolas é a de levar crianças a esse tipo de lugar, mas adultos? Tenho certeza de que para eles, aquela aula foi mais importante do que qualquer outra. Puderam nos conhecer fora do ambiente escolar. Viram que a professora come pipoca e algodão doce. Que a inspetora, tão zangada, morre de medo do globo da morte e que o porteiro ficara encantado com uma trapezista. Riram, cantaram, aplaudiram e tiveram uma aula de vida, vendo gente comum ganhar a sua com seu talento. Percebi que cada um saiu dali disposto a valorizar o que faz de melhor coisas que, muitas vezes, são mal vistas pela escola, ainda voltada para a alta cultura e para conhecimentos formais. Ao ser fotografada ao lado de uma inspetora e receber um chaveiro, percebi o nome do circo estampado no objeto: Alegria. Não podia ser outro, pois foi exatamente isso que essa aula proporcionou aos meus alunos. Será que mal-educada não anda a escola, ao negar a alegria a seus alunos?

(Permuta: a Página da educação/Educação & imagem http://www.lab-eduimagem.pro.br/jornal/)

Adriana Maria Loureiro


  
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Edição:

N.º 181
Ano 17, Agosto/Setembro 2008

Autoria:

Adriana Maria Loureiro
Membro do grupo de pesquisa "Narrativas, memórias e atualização identitária em contextos educativos" do Laboratório de Educação e Imagem da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, UERJ.
Adriana Maria Loureiro
Membro do grupo de pesquisa "Narrativas, memórias e atualização identitária em contextos educativos" do Laboratório de Educação e Imagem da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, UERJ.

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