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Nova Lei da Educação Especial nos pratos da balança

Após um período de secretismo e ausência de diálogo com a comunidade educativa e científica, foi finalmente publicada a 7 de Janeiro 2008 a nova lei da Educação Especial (Decreto-lei nº 3/2008).
Uma análise critica não pode deixar de focar aspectos positivos e negativos, sendo nosso objectivo colocar dez argumento em cada prato da balança.

10 aspectos positivos:

  1. Define a Inclusão sócio-educativa como objectivo central da Educação Especial, clarificando o modelo educativo a seguir.
  2. Articula o princípio da Inclusão com o direito à singularidade de cada aluno e à oferta de respostas educativas adequadas. 
  3. Determina a prioridade de matrícula para os alunos com Necessidades Educativas Especiais de Carácter Prolongado, NEECP.
  4. Define o princípio da não descriminação, não podendo ser recusada a matrícula destes alunos em escolas particulares, públicas ou profissionais financiadas directa ou indirectamente pelo Ministério da Educação.
  5. Reforça os direitos de participação dos pais e encarregados de educação no processo educativo do seu educando e a confidencialidade dos processos.
  6. Regulamenta as Escolas de Referência e Unidades para alunos Surdos, Cegos, Autistas e com Multideficiência. Muitas delas já existiam havendo lacunas na regulamentação das mesmas.
  7. Organiza e explicita os instrumentos de avaliação e planificação, bem como as medidas a aplicar, constituindo uma actualização do anterior Decreto-Lei 319/91.
  8. Atribui funções claras ao SPO, ao Director de Turma e ao Conselho Executivo. Define também as funções dos professores de Educação Especial, referindo ainda a existência do Departamento de Educação Especial e suas atribuições. Estes aspectos, a par da criação anterior de um Grupo de Docência, consagram um quadro organizacional e funcional da Educação Especial.
  9. Cria cobertura legal para Processos de Transição para a Vida Pós-escolar, como forma de preparação para a Inclusão social futura do aluno, após sair da escola.
  10. Ao revogar o Dec.-Lei 319 e o artº 6º da Portaria 1102/07 de 3 de Novembro, acaba com o suporte legal que permitia os encaminhamentos para as instituições, devendo o ensino regular preparar-se para receber efectivamente todos os alunos. Portugal assume-se como país de via única em termos de Inclusão.

10 aspectos negativos:

  1. Adopta a Classificação Internacional de Funcionalidade, CIF, como o instrumento para a classificação dos alunos e tomada de decisão sobre o "acesso", ou não, à Educação Especial. Seria escusado recorrer a um instrumento da Saúde para integrar um processo que deve ser pedagógico e Inclusivo. A Educação Especial passa a ser alicerçada com base da selecção/classificação de alunos através de itens da saúde e aspectos ligados à funcionalidade, o que representa um retrocesso ao paradigma bio-psico-social e não um avanço para um modelo Inclusivo.
  2. É a avaliação que determina o acesso dos alunos à Educação Especial, havendo um "crivo" apertado na selecção através de um processo excessivamente burocrático e labiríntico na avaliação inicial, onde se prevê a intervenção de equipas inexistentes e de onde se torna difícil planificar para a Inclusão.
  3. Atribui funções quase exclusivamente técnicas aos docentes de Educação Especial, como o apoio em áreas específicas normalmente trabalhadas em situação de separação do grupo/turma. As funções destes profissionais teriam também de contemplar aspectos de cooperação com os restantes docentes, parcerias em sala de aula e outro tipo de actividades de acompanhamento dos alunos e dos professores, com vista à Inclusão nas actividades lectivas, na dinâmica das turmas, no currículo e na vida escolar. Sem esse tipo de suporte ao ensino regular, as transformações necessárias ficam por fazer e muitos dos tempos de permanência na turma ficarão inviabilizados, não havendo recursos para esse tipo de trabalho.
  4. O sistema de apoios educativos é separado, desagregando os recursos, os alunos e a organização comum. Os apoios deveriam ser geridos como um todo, sendo que, nalguns casos haveria apoio da Educação Especial. Haveria uma melhor rentabilização dos recursos, bem como um conhecimento mais profundo de todos os casos com Necessidades Educativas Especiais, NEE. O leque de respostas às necessidades dos alunos seria comum, pois há medidas de apoio sócio-educativo que poderiam beneficiar os alunos da Educação Especial e vice-versa.
  5. O documento dá demasiado ênfase aos aspectos funcionais na educação dos alunos com Currículo Específico Individual (ex-Alternativo) e à preparação para a vida futura, determinando que esta última se inicia a 3 anos do final de escolaridade, quando os alunos têm ainda 12 ou 13 anos de idade. Este aspecto não está bem regulamentado e pode dar azo a más interpretações. Num modelo Inclusivo, os contextos educativos e o currículo "normais" são os alicerces das aprendizagens escolares para todos os alunos, devendo haver uma forte ponderação neste equilíbrio, de forma a não colidir com os direitos de alunos e expectativas das famílias. O facto dos alunos com NEECP não efectuarem o volume de aprendizagens escolares exigidas aos restantes, não os deve empurrar para uma educação à parte ou suposta via profissional. A ênfase deveria estar nas transformações da escola e do ensino nas turmas e não na implementação de medidas alternativas.
  6. Fala nos Centros de Recursos e em Tecnologias de Apoio sem explicitar ou regulamentar do que se trata, como se implementam e como se financiam.
  7. O financiamento da Educação Especial continua a ser assunto "tabú". Com as escolas de ensino regular a receberem os alunos que, tradicionalmente eram institucionalizados, seria fundamental saber se as verbas passam a ser transferidas directamente, ou que outra forma de financiamento será implementada, nomeadamente quando se criam Centros de Recursos, Escolas de Referência e Unidades. Os recursos humanos e financeiros tornam-se de tal forma essenciais, que, a ausência de uma referência a estes aspectos, leva-nos a temer que o futuro continue a ser cheio de incertezas, recuos e angústias para professores e famílias, sempre dependentes de projectos efémeros de aprovação mitigada, de contratações a prazo, de ausência de materiais adequados e da continuação da política do "desenrasca".
  8. Após ter desferido um rude golpe na Intervenção Precoce, o Ministério da Educação vem agora dedicar-lhe um parágrafo nesta nova legislação. Muito pouco é dito, algumas ambiguidades ficam no ar e acabamos por ficar sem saber como vai ser o futuro deste sector em Portugal. Merecia muito mais.
  9. A formação dos docentes é esquecida. Com um acréscimo de responsabilidade e com um quadro de competências agora definido, importava reflectir sobre o perfil do professor de Educação Especial e que formação deve ter para responder à exigência de trabalhar para uma Educação Inclusiva.
  10. No geral, este documento permite a continuidade do sistema educativo como ele se encontra, sem prever as alterações necessárias nas políticas, na organização escolar e na pedagogia praticada, para que se possa efectivamente construir uma Educação Inclusiva. Os docentes de Educação Especial têm por missão promover a Inclusão sem que o sistema mude, o que sabemos ser impossível. A lei tem esta contradição de princípio, ao pregar a Inclusão, mas operacionalizando uma "integração actualizada". Esperávamos linhas de força noutra direcção e isso teria sido possível se este documento tivesse sido participado e nele fossem vertidos os saberes e as competências actuais na área da Inclusão. Este Decreto-Lei é um bom ponto de partida para uma discussão, mas não tem uma chegada à altura das expectativas.

Jorge Humberto Nogueira


  
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Edição:

N.º 176
Ano 17, Março 2008

Autoria:

Jorge Humberto Nogueira
Mestre em Educação Especial
Jorge Humberto Nogueira
Mestre em Educação Especial

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