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Ajuda Internacional para a Educação depois do 9/11: Os perigos da nova agenda de segurança

Durante os anos 1980 e o início dos anos 1990 o desenvolvimento da ajuda internacional para a educação nos países de baixo rendimento foi frequentemente feito na condição de que o governo que recebia o auxílio implementasse um conjunto de reformas neo-liberais na educação, ligadas às políticas de ajustamento estrutural e à austeridade fiscal, e há muitas evidências que estas tiveram um efeito devastador nos sistemas educativos.
Muitos críticos desafiaram a tónica excessiva colocada sobre a economia como o veículo dessas reformas, tanto em termos dos efeitos da austeridade fiscal sobre os já sub-financiados sistemas educativos, como também em termos da confiança colocada na teoria do capital humano para calcular as taxas de retorno esperadas da educação. Eles argumentam que a educação é muito mais do que 'capital humano' e que o Banco Mundial e as outras instituições que estão a veicular as referidas reformas devem ir para além deste entendimento restrito do valor da educação e reconhecer os efeitos políticos e culturais que ela potencialmente produz.
Actualmente, esta estreita focalização dos principais doadores internacionais e das ONGI parece ter sido suplantada por um mais amplo reconhecimento do papel da educação que assume a sua importância central na socialização, na cidadania e no processo de construção nacional. Se há aqui sinais de um possível abandono do economicismo duro do passado, há também alguns perigos. Uma área em que esta mudança de focalização é manifestamente clara é no auxílio à educação nos países em conflito ou em situação de pós-conflito, e particularmente esses países com grandes populações islâmicas. Crescentemente, a educação está a ser vista como um factor-chave com que a 'guerra ao terror' pode ser travada. Se, por um lado, isto pede uma viragem para um curriculum em que a educação para paz e para os direitos humanos são enfatizados, por outro lado, pode também levar a uma crescente focalização na fusão das agendas de segurança dos poderosos doadores bilaterais com as políticas e as práticas que eles apoiam no campo da educação.
A agência norte-americana de doação bilateral USAID diz que "a nossa actual abordagem da educação responde ao objectivo geral de moderar a intolerância radical e a ideologia anti-Ocidente". Depois do 9/11 esta perspectiva conduziu a que USAID aumentasse o financiamento para o desenvolvimento internacional do Paquistão de 88 milhões de dólares em 2001 para 775 milhões de dólares em 2002. Como refere a USAID, a sua estratégia é a de "negar recrutas às organizações terroristas através da oferta de melhores alternativas: educação básica vs. 'madrassas' radicais, formação de competências vs. desemprego".
Se é possível argumentar contra o fortalecimento da educação e formação básica e vocacional, os perigos da politização do auxílio para a educação estão por todo o lado e muitas ONG vêem com crescente preocupação o facto de se estarem a tornar adjuntos e auxiliares de aventuras militares das grandes potências ocidentais e da sua 'Guerra ao Terror'.
A Guerra-Fria pode fornecer alguns exemplos dos tipos de perigos que esta situação pode despoletar. Na sequência da invasão do Afeganistão, pela União Soviética, em 1979, os EUA e os seus aliados procuraram minar a ocupação. Uma estratégia foi a de apoiar os vários lutadores 'mujahid' da resistência afegã na guerra de guerrilha. Foram canalizados recursos através do Paquistão, e muitos dos guerrilheiros foram recrutados entre os jovens que viviam nos campos de refugiados que se desenvolveram ao longo da fronteira paquistanesa e entre jovens paquistaneses que estudavam religião nas 'madrassas'.
Em 1984 foi iniciado um projecto de 51 milhões de dólares financiado pela USAID, desenvolvido pelo Centro de Estudos Afegãos da Universidade de Nebraska-Omaha, para elaborar manuais para serem utilizados nos campos de refugiados. Como um comentador sublinhou, estes livros de textos de 'guerra' tinham como "objectivo promover os valores jihadi e a formação de militantes afegãos, e foram distribuídos nos campos de refugiados afegãos e nas madrassas paquistanesas onde os estudantes aprendiam matemática básica contando os mortos russos e espingardas Kalashnikov". Um excerto do manual de matemática do 4º ano dá o tom do tipo de curriculum:
'A velocidade de uma bala de Kalashnikov é de 800 metros por segundo. Se um russo estiver a uma distância de 3 200 metros de um mujahid, e se o mujahid apontar à cabeça do russo, calcula quantos segundos leva a bala a atingir a cabeça do russo. '
Quando os Taliban tomaram o poder na sequência da retirada soviética, o curriculum foi implementado em todo o país. Entretanto, no Paquistão, muitas 'madrassas' continuaram a usar os manuais. São essas mesmas 'madrassas' que se tornaram o centro das preocupações dos EUA como alegadas promotoras da violência islâmica, militância e sentimento anti-americano.
Embora extremo, este exemplo ilustra a forma como o auxílio em educação pode ser usado para fins militares e sublinha a necessidade da nossa vigilância sobre aquilo que está agora a ser veiculado em nome do 'auxílio' à educação e sobre os futuros perigos que tal pode produzir.

Mário Novelli


  
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Edição:

N.º 176
Ano 17, Março 2008

Autoria:

Mário Novelli
Colaborador de «a Página da educação». Universidade de Amesterdão. Holanda
Mário Novelli
Colaborador de «a Página da educação». Universidade de Amesterdão. Holanda

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