Pierre Merle, na sua análise do processo de democratização do ensino em França[1], desenvolve uma tipologia que contempla três modalidades de democratização: uniforme, igualizadora e segregativa. No primeiro tipo, a democratização do ensino traduz-se num investimento generalizado de todos os grupos sociais na escolarização da respectiva prole, proporcionando-lhe mais anos de estudos, mantendo-se, contudo, a décalage entre os vários grupos. No segundo caso (democratização igualizadora), o alongamento do nº médio de anos de estudos surge acompanhado de uma diminuição do hiato entre os diversos grupos, desde logo porque os mais favorecidos, primeiro nos níveis iniciais, foram progressivamente atingindo a "saturação" com taxas de escolarização de 100%. Contudo, como salienta Duru-Bellat (2006: 20), "mais estudos para todos não quer dizer os mesmos estudos para todos."[2] É aqui que entra o conceito de democratização segregativa. Este tipo de democratização do ensino, em expansão em geografias sócio-políticas bastante diversas, incluindo Portugal, pretende dar conta da coexistência de fenómenos de crescimento generalizado das taxas de acesso dos vários grupos sociais a um determinado nível de escolarização (por exemplo, o secundário), com reforço das desigualdades nas oportunidades de acesso às várias fileiras desse nível de escolaridade. Neste caso, parafraseando Duru-Bellat, não será tanto o concluir (ou não) o secundário que faz a diferença, mas o tipo de secundário concluído. O que diversos estudos demonstram é que, apesar de a percentagem de crianças e jovens oriundos de meios populares terem globalmente aumentado nos vários níveis e fileiras de ensino, essa evolução foi bastante diferente nos distintos percursos escolares. Por isso, observa Duru-Bellat, "a democratização, real a certos níveis, não é antinómica com uma hierarquização social crescente dos diferentes itinerários" (idem. Ibidem). Na verdade, como sustenta Antoine Prost, a democratização "quantitativa" (crescimento do acesso aos diferentes níveis do sistema educativo das crianças de categorias sociais desfavorecidas), não assegura necessariamente a democratização "qualitativa" (igualdade de acesso das diferentes categorias sociais a um determinado nível de ensino). E, contudo, apenas a última será capaz de desafinar a correia de transmissão que transmuta desigualdades sociais em desigualdades escolares que vão legitimar novas desigualdades sociais, refundando a educação como campo de emancipação e de maior justiça social. Estas considerações surgem como necessárias à problematização e questionamento da bondade da muito propalada "Iniciativa Novas Oportunidades", nomeadamente no eixo de intervenção jovens. Se "fazer do nível secundário o patamar mínimo de qualificação para jovens e adultos" se nos afigura como um objectivo socialmente louvável, concretizá-lo pela expansão da oferta das fileiras menos prestigiadas do secundário, segmento com clara sobre-representação das categorias sociais mais desfavorecidas (cursos profissionalizantes), e que proporcionam acesso às ocupações com remunerações mais modestas, pode criar a ilusão de uma certa democratização (desde logo quantitativa), e até melhorar a posição do país no ranking europeu da escolarização (sempre importante para fins de "cosmética política"), mas muito provavelmente não corrigirá as assimetrias e as desigualdades, antes as recomporá e diferirá no tempo. Esta medida de política educativa enquanto "tecnologia social" (Grácio, 1986)[3] parece cumprir aqui a importante função de reorientar certos grupos de jovens no sentido da escolha de certas fileiras (por exemplo através de condições de frequência aparentemente mais vantajosas para os que fizerem essa opção), preservando outras (as que conferem acesso às posições sócio-profissionais mais gratificantes) como "reservas sociais" de acesso limitado aos herdeiros no sentido bourdieusiano do termo. Neste caso, a "democratização quantitativa" convive (e encobre) a "democratização segregativa" pois, apesar de gerar "excluídos do interior" (Bourdieu), confere uma aparente face de legitimidade ao sistema deslocando, sub-repticiamente, o ónus da exclusão para os ombros dos excluídos.
[1] Merle, P.(2002). La Démocratisation de l'enseignement. Paris : La Découverte. [2] Duru-Bellat, M. (2006). L'inflation scolaire. Paris: Seuil. [3] Grácio, S. (1986). Politica educativa como tecnologia social. As reformas de ensino técnico de 1948 e 1983. Lisboa: Livros Horizonte
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