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Fizeram-me viver sempre sob o signo do futuro

Ao começar um novo ano é costume desejar que ele corra bem aos amigos e até aos inimigos. Estes votos serão suportados pela convicção de que a vida dos povos tende a melhorar sempre. E a História mostra-nos que a humanidade acumulou, continuadamente, bens materiais e conhecimentos capazes de melhorar progressivamente a vida das pessoas. Em cada ano que passa, dispomos de mais conhecimento, melhor tecnologia, maior formação. Mas, apesar destas melhorias as políticas dos homens nem sempre as fizeram reverter a favor dos povos.
Que me lembre, sempre me fizeram viver sob o signo do futuro. Mais novo, antes do 25 de Abril, fui ensinado pelos poderes então reinantes a «poupar para a velhice», sendo com frequência alertado para o «nunca se sabe o que nos pode acontecer no futuro». Ensinamentos e alertas em harmonia com slogans da ditadura como: «pobrezinhos mas honrados» ou «remendados mas limpos».
Outros lemas davam sustento a este modo mesquinho de ver a vida: «soubesses o que custa mandar e preferias obedecer». Muitos apelos à aceitação da pobreza, da servidão, da obediência cega aos nossos «superiores». Este clima preparou-nos para acreditar que somos governados por «salvadores da pátria». E preparou os «salvadores» a acreditar que o são de facto. Como então nos diziam e nos mandavam dizer na escola, Salazar era o salvador da «mãe pátria» e dos filhos desta (1).
Não tem sido só nos últimos cinco ou seis anos que temos vindo a ser salvos de um suposto desastre nacional. À semelhança da salvação em andamento, já Salazar nos salvou da bancarrota, da preguiça, da ideia do bacalhau a pataco, da guerra, da anarquia, da dissolução dos costumes, da soberba, do comunismo e do desejo satânico de querer deixar de ser pobre. Não há agora nada de novo. Fomos ensinados em crianças que «mais vale ser pobre e entrar no reino de Deus do que rico e ir parar às profundas do inferno». O que agora nos pedem é «apenas» que abandonemos abrilistas ilusões de cidadania, metamos o rabinho entre as pernas, e nos conformemos com o servicinho, a poupança e o respeitinho.
Desde o 25 de Abril que os partidos, e mesmo os sindicatos, não cessam de nos prometer o futuro. Tudo se promete em nome do futuro. Somos assim treinados para aceitar «o pão nosso de cada dia», restrições e injustiças, impostas pela minoria dominante, em nome de um futuro que nunca será presente. Quem dera que os governos se deixassem de lérias e nos entregassem a responsabilidade de cuidarmos do nosso futuro e do futuro dos nossos filhos e netos, encarregando-se eles de tratar com algum proveito do nosso presente.
No final do mês de Dezembro, a propósito do ano que se aproximava, perguntava e respondia o filósofo José Gil: «Afinal, em que situação estamos? Não sabemos. A política de alta-voltagem de Sócrates é um pau de dois bicos (...) a população queixa-se, mas não como antigamente. Já não se queixa de um país mítico, degradado e sem conserto, mas de coisas concretas, de menos dinheiro, menos qualidade de vida, mais sacrifícios no dia a dia. Denunciam-se escândalos, claro, as taxas moderadoras nos hospitais, o IRS das reformas, ao lado dos lucros descomunais dos bancos e das reformas milionárias de certos gestores, etc. Denuncia-se, mas aceita-se.»(2)
Não estou certo de que o filósofo tenha completa razão. Não sei se é rigoroso dizer que, finalmente, o povo se pronuncia criticamente sobre a realidade da vida. Gostaria que sim. Que em 2007 cada um de nós, primeiro como cidadão individual e depois como intelectual orgânico, fosse acentuando a sua capacidade de fazer crítica. Crítica certeira(3) à realidade envolvente, pondo de lado a estéril e inútil denúncia e má língua. Mas o filósofo põe o dedo na ferida quando lembra: «denuncia-se, mas aceita-se». É que entre a crítica e a denúncia [o bota-abaixo] vai a distancia abismal que separa a rejeição da aceitação contrafeita. A crítica rejeita porque mostra com clareza a alternativa. A mera denúncia indigna-se, esbraceja, grita, mas aceita. Oxalá em 2007 também as organizações que vivem em nome do povo fossem capazes de dar este passo decisivo que separa a queixa, a denúncia, a manifestação de descontentamento, da crítica.
Dos poderosos que nos dominam não se esperam novidades. Viverão cada vez melhor. E para que isso seja possível, sem contrariedades de maior, continuarão a impor, no espaço público, o seu discurso retórico. As carpideiras que vivem do regime continuarão a cantilena e choradeira com que nos brindaram nos últimos cinco ou seis anos. Continuarão a dizer que os portugueses são por sua natureza um povo madraço e desejoso de viver acima dos recursos nacionais. Como país dirão sermos dos piores do mundo e, como povo, este que já foi «o bom povo português» (4) é agora o povo mais ordinário que o bom Deus permite que viva à face da terra. Um olhar pelos jornais, uns momentos de rádio, meia hora de televisão, chegarão para nos fazer compreender que somos a vergonha do mundo, o escárnio da humanidade, uma raça maldita apostada em envergonhar a «fina-flor da bardamerda» esse «sal da terra», essa pouca de gente «de algo» que não vive do trabalho mas do poder e que clama em sinfonia pela modernização do estado e a «bola baixa» do povo.
Enquadrado pelos sindicatos - essas organizações diabólicas e conservadoras -o povo português é um povo perdido para a modernidade pois «vive de normativos que geram a preguiça e o parasitismo, vivendo convencido que na vida são tudo facilitismos». Acreditando no que lemos e ouvimos, Portugal continuará, em 2007, a ser a piolheira que tanto incomodou as nossas elites de finais do século XIX.
Alguma da fina-flor receita o remédio: «A democracia é um regime excelente, mas tem de se defender das suas próprias tentações», receitam. «A pior tentação é a que pode levar os governantes a governar de acordo com a vontade dos eleitores», avisam. «A mais elementar prudência obriga a entregar o poder de facto às entidades reguladoras do mercado (...) as quais devem obedecer às exigências do mercado e não dos governos», sentenciam. Será preciso explicar quem são os donos do mercado e quem dita as suas leis?
Nestas «democracias modernas» - deus salve o mercado - o povo não é mais do que um «activo» fora de época, em desvalorização e em saldo. Recomendam-lhe as elites que aprenda a sobreviver com parcos recursos e muito «sangue, suor e lágrimas». Aproveitando o privilégio de usar este espaço, por mim, recomendo, em 2007, apesar de tudo, que continuemos a subverter o regime, porfiando no prazer de aprender e ensinar a viver com prazer.

Notas:
1) Os filhos legítimos da pátria são poucos. A maioria do povo é constituída por filhos ilegítimos da pátria e por isso deserdados da nação.
2) José Gil, Espaço de indeterminação.
3) Crítica certeira, porque baseada no conhecimento dos factos, pois é essa que permite acertar nos alvos com a precisão mortífera da evidência.
4) «Bom povo»: quando servil, de chapéu na mão, caladinho e submisso.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 163
Ano 16, Janeiro 2007

Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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